domingo, 24 de janeiro de 2021

Alba

ALBA - Geir Campos
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Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Os Gastrochatos II

Terminando a série, a segunda crônica de Walcir Carrasco. Não se pode dizer que ele seja um grande nome da literatura, mas descreve sempre ludicamente bem os problemas mais atuais. Hoje em dia, a verdade é que tudo precisa ser chique e elitizado. A comida parou de ser gostosa, para ser servida em pequenas quantidades com nomes estrangeiros. A poesia parou de ser difundida e popular para ser coisa intelectual. A literatura virou incompreensível porque é necessário ter o je ne sais pas quoi para compreender. Com isso, acabaram os bons restaurantes, os bons poetas, os bons escritores. Tudo virou imitação barata, literatura de folhetim, poesia de loucos. Imaginem uma crônica dos literochatos!

 

 

Os Gastrochatos II – Walcir Carrasco

 

 

Sou guloso, não nego. Pesquiso receitas, descubro restaurantes. Gosto de comida de botequim benfeita e fujo de lugares onde a decoração é mais importante que a cozinha. Aprendi uma regra desde cedo: com peixes, vinho branco; com carnes, tinto. Mas regras existem para ser quebradas, na vida e no paladar. E por muito tempo deixei a intuição fazer a alegria de meu estômago.

Mas agora entrou em moda a harmonização. A escolha de um cardápio se tornou tão complexa quanto meu primeiro vestibular. O termo vem de harmonia. Segundo o dicionário Aurélio: "Conjunto ou sucessão de sons agradáveis ao ouvido; ciência da formação e encadeamento dos acordes". Em gastronomia, significa conciliar bebidas com pratos. Na teoria, é lindo. Na prática, uma chatice. Faz a alegria dos gastrochatos, que gostam de exibir dotes culinários. Esses tipos, tão em voga atualmente, gostam de falar difícil para mostrar que sabem mais. Eis um comentário típico:

- Esse vinho mais encorpado, de notas vibrantes e muita personalidade, é ideal para acompanhar carnes com sabor intenso.

Deu para captar? É uma linguagem mais difícil de destrinchar que um peru de Natal! Eu me pergunto se a pessoa sabe o que está falando. O que é realmente a personalidade de um vinho? Como resolver o dilema de um camarão, suave ou intenso, dependendo da receita? Fui a um jantar em um hotel em que, a cada prato, se servia um vinho diferente para, justamente, harmonizar. Lembro-me vagamente: fui carregado para meu apartamento.

No caso dos vinhos há uma tradição para combinar pratos e rótulos. Os enólogos conhecem o assunto. Mesmo sendo muito engraçados ao descrever vinhos de forma um tanto obscura. Antes de beber, fico torcendo o nariz em busca do tal "aroma levemente frutado" e depois estalo a língua à espera das "notas de cacau e madeira". E aguardo o sabor "intenso e vibrante": vou levar um choque e sair pulando? Quando recebo propaganda, penso: alguém acha que, se eu não entender, vai vender mais?

Mas e os azeites, chás e cafés? Não se pode mais escolher um bom extra-virgem para a salada. É preciso saber se combina, a origem, a característica... Já fui a degustação de azeites em que me fizeram provar uma colherinha de cada tipo. No final, se me dessem óleo diesel, não perceberia a diferença. Especialistas em chás insistem até em harmonizá-los com meu estado de espírito. Ouvi o conselho de um especialista:

- A escolha do chá deve ser minuciosa, para pacificar sua alma ou despertar sua força interior...

Mais fácil bater na porta de um pai de santo!

E os cafés? Adoro tomar café desde garoto. Sempre fui feliz. Agora descobri que não passo de um ignorante. Tal como os vinhos, os tipos de café exigem conhecimentos enciclopédicos. Não são mais fortes ou fracos. Mas "aveludados", "com notas de cereais", "amadeirados", "intensos", "suaves" ou "persistentes". Segundo a descrição dos vendedores, alguns "têm caráter". Bem... Com tanta falta de gente com caráter, é bom saber que pelo menos o café tem!

Quando algum chato discorre sobre minúcias da harmonização, eu pergunto:

- E minha intuição, onde fica? E meu gosto pessoal?

Tudo bem: conciliar paladares tem seu valor. Mas não deve ser obrigação ou símbolo de status. Uma boa refeição é uma experiência de vida, que não pode ser reduzida a uma ciência exata de combinações de sabores. Para mim, a harmonização que conta é entre os amigos à mesa, onde a refeição e a bebida são parte do afeto que quero compartilhar.

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Os Gastrochatos

Ainda mantendo o ritmo, e ainda alternando estilos, tipos e origens, eis uma série de crônicas (duas) do contemporâneo Walcir Carrasco. Embora eu não goste da maioria das coisas que ele escreve, algumas crônicas são simplesmente geniais, como essas duas dos gourmets. Gourmet é uma palavra boba de tudo, que quer dizer amante da gastronomia. Até em francês, a origem da nova moda do engessamento da culinária, essa palavra é muito próxima de gourmand, que quer dizer guloso. O próprio Walcir mostra a "gula" do saber das comidas, da forma como se vê hoje em dia... Se todas as outras artes, nós devemos usar a inspiração e ela deve ser interpretada de acordo com o que sentimos, porque só a gastronomia é rígida? Poderíamos tentar inverter esses conceitos!

 

 

Os Gastrochatos – Walcir Carrasco

 

 

Todo dia surge uma nova moda culinária! Muitos adoram demonstrar seus conhecimentos sobre cada novo tempero, ingrediente, chef ou tendência! São os gastrochatos. Um dos pratos mais falados é a tal da "espuma". Faz-se espuma de tudo, até de salmão. Fico enjoado só de pensar em espuma de peixe! Um amigo comentou, entusiasmado:

– Comi o ovo perfeito!

É um ovo cozido a determinada temperatura durante horas. Mas ovo não tem sempre gosto de ovo? Na esteira vêm bolinhas que explodem na boca e outras novidades. Fruto da culinária do catalão Ferran Adrià. Reservas para seu restaurante, na Espanha, só com dois, três anos de antecedência. Furar a fila é mais difícil que fazer tomografia no INSS. Adrià realiza alguns eventos no exterior, mas poucos. Tem seus seguidores, sempre em endereços de luxo. Por estatística, é impossível que tanta gente tenha provado suas receitas, mas é chique falar a respeito. Há quem pague fortunas para comparecer a eventos culinários. E depois se exibir. Vi o cardápio de um jantar caríssimo, disputado a tapas. Entre outros itens, lá estava: tartar de tomate. Não passa de tomate cru temperado. O gastrochato jamais admitirá ter gasto uma fábula em um prato tão simples. Prefere o nome difícil: tartar! Falando das palavras: inventaram agora o "caviar" de berinjela, de abobrinha etc. etc... Caviar de verdade vem das ovas de esturjão. O resto são bolinhas pequenininhas. Quem ouve a respeito sofre ao imaginar o que está perdendo na vida. Eu digo: berinjela crua! Outra moda é a tal da "finger food". A comida é servida em porções mínimas! Para degustação! Fui a um jantar em que tudo vinha em potinhos: um dedinho de paella, outro de macarrão, e assim por diante. Passei fome. Se minha mãe servisse tão pouco, seria chamada de pão-duro. Hoje virou coisa refinada!

Também existem os gastrochatos da saúde. Os mais extremos são os da linha vegan. É o vegetarianismo radical. Uma conhecida jamais usa em vegetais uma faca que tenha cortado carne, porque está "impura". Os vegans não desfrutam nenhum derivado de animais. Nem mel. Um amigo entrou em um novo restaurante. Prato do dia: moqueca de tofu. Eu teria fugido. O inocente sentou-se. Veio tofu no azeite de dendê. Dá para imaginar coisa menos apetitosa? Reclamou. Levou bronca da dona.

– Pensei que era um tofu refogado...

– Você devia saber que moqueca tem azeite de dendê!

Correu até a hamburgueria mais próxima. Em outra época, a moda era a macrobiótica. Havia um regime à base unicamente de arroz integral que prometia deixar a saúde impecável. Um conhecido foi parar no hospital, com desnutrição. A explicação do mestre:

– Você não fez direito.

Um amigo natureba adora cozinhar para as filhas: tofu frito com cebolinha e arroz integral. Comentou, espantado:

– Descobri que elas comem bife escondido na casa das amigas!

– Você está criando duas carnívoras – expliquei. – Quem cresce comendo tofu vai se esbaldar na primeira churrascaria até antes de aprender a dirigir!

Vem mais por aí. Segundo descobertas científicas, quanto menos se ingere comida, mais se vive. É fato. Há um movimento nos Estados Unidos cujos membros comem o mínimo possível. Li numa reportagem: os seguidores fizeram um banquete em torno de fatias de beterraba! Um homem era alaranjado, com a dieta à base de cenoura! A moda vai chegar, se já não chegou ainda! Comer com os amigos é tão bom! Mas o gastrochato transforma o prazer em teoria. E a culinária em uma espécie de religião! Gastronomia é uma arte. Mas pode virar uma chatice.

 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os Lusíadas: Canto I

Esse é o teste do retorno. Se tudo der certo, quem sabe posso voltar a postar com certa freqüência. Para a retomada, trago os versos iniciais do maior poema da língua portuguesa. Em todos os sentidos, Os Lusíadas, é uma obra única na nossa cultura. O mais inacreditável, porém, é que, mesmo sua obra tendo recebido um certo reconhecimento (Camões tinha uma pequena pensão do rei), o poeta morreu na miséria e esquecido, com sua obra sendo valorizada somente depois de sua morte. Como compensação, ele morreu (1580) logo depois de ver sua maior esperança virar fumaça: a continuidade do reino por D. Sebastião (1578), na batalha de Alcaçar-Quibir.

 

Os Lusíadas – Luis Vaz de Camões

 

Canto I

 

1

As armas e os Barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

 

2

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

 

3

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

 

4

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham enveja às de Hipocrene.

 

5

Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

 

6

E vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Pera do mundo a Deus dar parte grande;

 

7

Vós, tenro e novo ramo florecente

De ũa árvore, de Cristo mais amada

Que nenhua nascida no Ocidente,

Cesárea ou Cristianíssima chamada

(Vede-o no vosso escudo, que presente

Vos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas e deixou

As que Ele pera si na Cruz tomou);

 

8

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

 

9

Inclinai por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

 

10

Vereis amor da pátria, não movido

De prémio vil, mas alto e quási eterno;

Que não é prémio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

 

sábado, 4 de janeiro de 2014

O Padrão

Padrão

Não se pode cansar de dizer o quanto Fernando Pessoa é genial e o quanto sua obra é vasta. No entanto, ao se juntar a capacidade do autor com um tema excelente, a história de Portugal, saiu Mensagem. Sempre digo que tenho pena de quem não fala português. Somos poucos nativos e muito poucos que aprenderam. E todo o resto do mundo, não pode nem imaginar o que está perdendo. Como está escrito um pouco depois, também na segunda parte da obra é que "mas o que a eles não toca é a magia que evoca o Longe e faz dele história."
Mensagem conta a história de Portugal. A primeira parte, descrevendo o escudo português, Fernando Pessoa vai contando a história de Portugal até a época das grandes navegações. Na segunda parte, O Mar Português, ele faz uma homenagem aos principais navegadores, os quais não eram simplesmente gente ignorante que o rei conseguia obrigar a entrar no barco atrás do dinheiro, mas eram pessoas que tinham estudado muito e eram, muitas vezes de famílias importantes de então. A terceira parte fala do futuro previsto pelo autor, o qual imaginava uma era onde Portugal voltasse a ser a nação mais importante do globo. Grande parte da teoria dele vem de suas doutrinas, que eu explico quando colocar alguma coisa dessa parte.
O Padrão é a homenagem à Diogo Cão, navegador que descobriu como chegar até o sul da África ao perceber que muitas vezes era necessário navegar ao laro, sem ver a terra. E isso só era possível pelo sistema de navegação e localização desenvolvido pelos navegantes. Apreciem e pensem sobre o significado.

Padrão - Mensagem - Fernando Pessoa

O esforço é grande e o homem é pequeno.  
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei  
Este padrão ao pé do areal moreno  
E para diante naveguei.  

A alma é divina e a obra é imperfeita.  
Este padrão sinala ao vento e aos céus  
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:  
O por-fazer é só com Deus. 

E ao imenso e possível oceano  
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,  
Que o mar com fim será grego ou romano:  
O mar sem fim é português. 

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma  
E faz a febre em mim de navegar  
Só encontrará de Deus na eterna calma  
O porto sempre por achar.  

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Fábula dos Dois Leões

Fábula dos Dois Leões


Nesse ano novo pretendo retomar minhas publicações. Certamente ainda não visitei todos os poetas e autores da nossa literatura, mas tem sido bem difícil encontrar novos, assim que vou começar a repetir autores, embora não obras.
Acho que essa crônica do Stanislaw Ponte Preta vem bem a calhar com o ano novo. Todo ano reclamamos das mesmas coisas (os políticos no caso), e todo dia de ano novo achamos que tudo vai mudar. Até agora, se mudou, nem deu para notar. Se tivesse sido publicada como nova essa semana, ninguém nem notaria.

Fábula dos Dois Leões - Stanislaw Ponte Preta

Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim Zoológico. Na hora da fuga cada um tomou um rumo, para despistar os perseguidores. Um dos leões foi para as matas da Tijuca e outro foi para o centro da cidade. Procuraram os leões de todo jeito mas ninguém encontrou. Tinham sumido, que nem o leite.

Vai daí, depois de uma semana, para surpresa geral, o leão que voltou foi justamente o que fugira para as matas da Tijuca. Voltou magro, faminto e alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do PTB que arranjasse vaga para ele no Jardim Zoológico outra vez, porque ninguém via vantagem em reintegrar um leão tão carcomido assim. E, como deputado do PTB arranja sempre colocação para quem não interessa colocar, o leão foi reconduzido à sua jaula.

Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrava do leão que fugira para o centro da cidade quando, lá um dia, o bruto foi recapturado. Voltou para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde. Apresentava aquele ar próspero do Augusto Frederico Schmidt que, para certas coisas, também é leão.

Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha: — Puxa, rapaz, como é que você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde? Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir arreglo, porque quase não encontrava o que comer, como é então que você... vá, diz como foi.

O outro leão então explicou: — Eu meti os peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por falta dele.

—  E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?

— Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o cara que servia o cafezinho... me apanharam.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Farsa de Inês Pereira

Gil Vicente é um dos mais antigos poetas portugueses. Seus autos, sobretudo os religiosos, como o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Alma e tantos outros, são um dos melhores expoentes da literatura portuguesa medieval. A Farsa de Inês Pereira é um pouco diferente das demais, apresentando um teatro mais voltado à comédia, como soem ser as farsas. O próprio Gil Vicente explica a obra no começo:

"A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa."

O trecho abaixo mostra a vida de casada de Inês Pereira com o primeiro marido, "o cavalo", a morte deste, e sua decisão de casamento com o segundo, o "asno"



A Farsa de Inês Pereira - Gil Vicente



Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga: 

Inês
“Quem bem tem e mal escolhe 
Por mal que lhe venha não s'anoje.” 
Renego da discrição 
Comendo ò demo o aviso, 
Que sempre cuidei que nisso 
Estava a boa condição. 
Cuidei que fossem cavaleiros 
Fidalgos e escudeiros, 
Não cheios de desvarios, 
E em suas casas macios, 
E na guerra lastimeiros.

Vede que cavalarias, 
Vede que já mouros mata 
Quem sua mulher maltrata 
Sem lhe dar de paz um dia! 
Sempre eu ouvi dizer 
Que o homem que isto fizer 
Nunca mata drago em vale 
Nem mouro que chamem Ale: 
E assi deve de ser
Juro em todo meu sentido 
Que se solteira me vejo, 
Assi como eu desejo, 
Que eu saiba escolher marido, 
À boa fé, sem mau engano, 
Pacífico todo o ano, 
E que ande a meu mandar 
Havia m'eu de vingar 
Deste mal e deste dano! 

Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz: 
Moço — Esta carta vem d’Além 
Creio que é de meu senhor.
Inês
Mostrai cá, meu guarda-mor 
E veremos o que i vem. 

Lê o sobrescrito. 

“À mui prezada senhora 
Inês Pereira da Grã, 
À senhora minha irmã.” 
De meu irmão...Venha embora! 

Moço
Vosso irmão está em Arzila? 
Eu apostarei que i vem 
Nova de meu senhor também. 
Inês — Já ele partiu de Tavila? 
Moço — Há três meses que é passado. 
Inês — Aqui virá logo recado 
Se lhe vai bem, ou que faz. 
Moço — Bem pequena é a carta assaz! 
Inês — Carta de homem avisado. 
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz: 

“Muito honrada irmã, 
Esforçai o coração 
E tomai por devoção 
De querer o que Deus quiser.” 
E isto que quer dizer? 
“E não vos maravilheis 
De cousa que o mundo faça, 
Que sempre nos embaraça 
Com cousas. Sabei que indo 
Vosso marido fugindo 
Da batalha pera a vila, 
A meia légua de Arzila, 
O matou um mouro pastor.” 
Moço — Ó meu amo e meu senhor! 
Inês — Dai-me vós cá essa chave 
E i buscar vossa vida. 
Moço — Oh que triste despedida! 
Inês
Mas que nova tão suave! 
Desatado é o nó. 
Se eu por ele ponho dó, 
O Diabo me arrebente! 
Pera mim era valente, 
E matou-o um mouro só!

Guardar de cavaleirão, 
Barbudo, repetenado, 
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão. 
Agora quero tomar 
Pera boa vida gozar, 
Um muito manso marido. 
Não no quero já sabido, 
Pois tão caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz: 
Lianor — Como estais, Inês Pereira? 
Inês — Muito triste, Lianor Vaz. 
Lianor — Que fareis ao que Deus faz? 
Inês — Casei por minha canseira. 
Lianor — Se ficaste prenhe basta. 
Inês — Bem quisera eu dele casta, 
Mas não quis minha ventura. 

Lianor
Filha, não tomeis tristura, 
Que a morte a todos gasta. 
O que havedes de fazer? 
Casade-vos, filha minha. 

Inês
 Jesus! Jesus! Tão asinha! 
Isso me haveis de dizer? 
Quem perdeu um tal marido, 
Tão discreto e tão sabido, 
E tão amigo de minha vida? 

Lianor
Dai isso por esquecido, 
E buscai outra guarida. 
Pêro Marques tem, que herdou, 
Fazenda de mil cruzados. 
Mas vós quereis avisados... 

Inês
Não! já esse tempo passou. 
Sobre quantos mestres são 
Experiência dá lição. 
Lianor — Pois tendes esse saber 
Querei ora a quem vos quer 
Dai ò demo a opinião. 

Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo: 

Inês
Andar! Pêro Marques seja. 
Quero tomar por esposo 
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja. 
Por usar de siso mero, 
Asno que me leve quero, 
E não cavalo folão. 
Antes lebre que leão, 
Antes lavrador que Nero.