sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Farsa de Inês Pereira

Gil Vicente é um dos mais antigos poetas portugueses. Seus autos, sobretudo os religiosos, como o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Alma e tantos outros, são um dos melhores expoentes da literatura portuguesa medieval. A Farsa de Inês Pereira é um pouco diferente das demais, apresentando um teatro mais voltado à comédia, como soem ser as farsas. O próprio Gil Vicente explica a obra no começo:

"A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa."

O trecho abaixo mostra a vida de casada de Inês Pereira com o primeiro marido, "o cavalo", a morte deste, e sua decisão de casamento com o segundo, o "asno"



A Farsa de Inês Pereira - Gil Vicente



Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga: 

Inês
“Quem bem tem e mal escolhe 
Por mal que lhe venha não s'anoje.” 
Renego da discrição 
Comendo ò demo o aviso, 
Que sempre cuidei que nisso 
Estava a boa condição. 
Cuidei que fossem cavaleiros 
Fidalgos e escudeiros, 
Não cheios de desvarios, 
E em suas casas macios, 
E na guerra lastimeiros.

Vede que cavalarias, 
Vede que já mouros mata 
Quem sua mulher maltrata 
Sem lhe dar de paz um dia! 
Sempre eu ouvi dizer 
Que o homem que isto fizer 
Nunca mata drago em vale 
Nem mouro que chamem Ale: 
E assi deve de ser
Juro em todo meu sentido 
Que se solteira me vejo, 
Assi como eu desejo, 
Que eu saiba escolher marido, 
À boa fé, sem mau engano, 
Pacífico todo o ano, 
E que ande a meu mandar 
Havia m'eu de vingar 
Deste mal e deste dano! 

Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz: 
Moço — Esta carta vem d’Além 
Creio que é de meu senhor.
Inês
Mostrai cá, meu guarda-mor 
E veremos o que i vem. 

Lê o sobrescrito. 

“À mui prezada senhora 
Inês Pereira da Grã, 
À senhora minha irmã.” 
De meu irmão...Venha embora! 

Moço
Vosso irmão está em Arzila? 
Eu apostarei que i vem 
Nova de meu senhor também. 
Inês — Já ele partiu de Tavila? 
Moço — Há três meses que é passado. 
Inês — Aqui virá logo recado 
Se lhe vai bem, ou que faz. 
Moço — Bem pequena é a carta assaz! 
Inês — Carta de homem avisado. 
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz: 

“Muito honrada irmã, 
Esforçai o coração 
E tomai por devoção 
De querer o que Deus quiser.” 
E isto que quer dizer? 
“E não vos maravilheis 
De cousa que o mundo faça, 
Que sempre nos embaraça 
Com cousas. Sabei que indo 
Vosso marido fugindo 
Da batalha pera a vila, 
A meia légua de Arzila, 
O matou um mouro pastor.” 
Moço — Ó meu amo e meu senhor! 
Inês — Dai-me vós cá essa chave 
E i buscar vossa vida. 
Moço — Oh que triste despedida! 
Inês
Mas que nova tão suave! 
Desatado é o nó. 
Se eu por ele ponho dó, 
O Diabo me arrebente! 
Pera mim era valente, 
E matou-o um mouro só!

Guardar de cavaleirão, 
Barbudo, repetenado, 
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão. 
Agora quero tomar 
Pera boa vida gozar, 
Um muito manso marido. 
Não no quero já sabido, 
Pois tão caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz: 
Lianor — Como estais, Inês Pereira? 
Inês — Muito triste, Lianor Vaz. 
Lianor — Que fareis ao que Deus faz? 
Inês — Casei por minha canseira. 
Lianor — Se ficaste prenhe basta. 
Inês — Bem quisera eu dele casta, 
Mas não quis minha ventura. 

Lianor
Filha, não tomeis tristura, 
Que a morte a todos gasta. 
O que havedes de fazer? 
Casade-vos, filha minha. 

Inês
 Jesus! Jesus! Tão asinha! 
Isso me haveis de dizer? 
Quem perdeu um tal marido, 
Tão discreto e tão sabido, 
E tão amigo de minha vida? 

Lianor
Dai isso por esquecido, 
E buscai outra guarida. 
Pêro Marques tem, que herdou, 
Fazenda de mil cruzados. 
Mas vós quereis avisados... 

Inês
Não! já esse tempo passou. 
Sobre quantos mestres são 
Experiência dá lição. 
Lianor — Pois tendes esse saber 
Querei ora a quem vos quer 
Dai ò demo a opinião. 

Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo: 

Inês
Andar! Pêro Marques seja. 
Quero tomar por esposo 
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja. 
Por usar de siso mero, 
Asno que me leve quero, 
E não cavalo folão. 
Antes lebre que leão, 
Antes lavrador que Nero. 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Memórias de um Sargento de Milícias

Manuel Antônio de Almeida é o primeiro romance modernista brasileiro, ainda que fora de época. Em primeiro lugar, porque ele não retrata o herói romântico, que é bom, sensível, e correto. Leonardo é "o malandro brasileiro". Além do mais, a linguagem usada não é a considerada própria naquele tempo. Ele escreve leve, como se contavam as histórias, colocando inclusive as gírias e erros nas falas das personagens. Evidentemente, naquele tempo, sua obra não foi aceita, de forma alguma, nem pelos literatos, nem pelo público. Hoje quase, dois séculos depois, finalmente se dá o verdadeiro valor à uma das jóias da literatura brasileira. O capítulo a seguir é dos mais hilários. Mostra a irreverência misturada aos hábitos sociais e modos de vida daquele estrato da população.


Memória de Um Sargento de Milícias - Capítulo XIII - Mudança de Vida - Manuel Antônio de Almeida



A custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior. Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos; e apesar da fama que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto, é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele: o menino tinha a bossa da desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais refinada má-criação que se pode imaginar. Achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava; se queria que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo; se queria que estivesse quieto, parece que uma meia oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do moto-contínuo. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe caísse nas mãos: um lápis, uma pena, um registo, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia. Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas, e não precisava mais de que ele o acompanhasse; no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez uma tremenda gazeta; tomou depois gosto a esse hábito, e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazeta-mor da escola, o que também queria dizer apanha-bolos-mor. Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a igreja da Sé. O leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa; na Sé à missa, e mesmo fora disso, reunia-se gente, sobretudo mulheres de mantilha, de quem tomara particular zanguinha por causa da semelhança com a madrinha, e é isso o que ele queria, porque internando-se na multidão dos que entravam e saíam, passava despercebido, e tinha segurança de que o não achariam com facilidade se o procurassem.
Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um pequeno sacristão que, digamos de passagem, era tão boa peça como ele; apenas se encontravam limitavam-se a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja; assim porém que se
acabavam as missas, e que saíam as verdadeiras beatas, reuniam-se os dois, e começavam a contar suas diabruras mais recentes, travando o plano de mil outras novas. Por complacência, ou antes por prova de decidida amizade, o companheiro confiava ao nosso gazeador um caniço, e faziam juntos o serviço e as maroteiras: a mais pequena que faziam era irem de altar em altar escorropichando todas as galhetas, o que lhes incendia mais o desejo de traquinar.
Esta vida durou por muito tempo; porém afinal já eram as gazetas tão repetidas, que o padrinho se viu forçado a acompanhá-lo outra vez todos os dias para a escola, o que desfez todos os planos que os dois tinham concertado. O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como não lhe seria agradável ver-se revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz, e feito também sacristão, ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse, ter por sua e de seu amigo toda a igreja, poder nos dias de festa, tomando o turíbulo, afogar em ondas de fumaça a cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa. Oh! isto era um sonho de venturas! Vendo-se privado, depois que o padrinho o acompanhava, de gozar parte destes prazeres, como fazia nos dias de fugida, atearam-se-lhe os desejos, e começou a confessá-los ao padrinho, dando a entender que nada havia de que agora gostasse tanto como fosse a igreja, para a qual, dizia ele, parecia ter nascido. Isto foi para o padrinho um alegrão, porque neste gosto recente do pequeno via furo aos seus projetos.
— Eu bem dizia... pensava consigo; não tem dúvida, vou adiante; o rapaz está-me enchendo as medidas.
Afinal o menino tomou um dia uma resolução última, e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão.
— Isso seria muito bom, disse ele, a fim de acostumar-me para quando for padre.
A princípio a idéia deslumbrou ao padrinho, porém mais tarde acudiu-lhe a reflexão, e assentou que seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura. Afinal porém tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno, que se viu obrigado a ceder. O menino tinha nisso duas enormes vantagens; satisfazia seus desejos e saía da escola, poupando assim as remessas diárias de bolos.
— Está bem, dissera consigo o padrinho, ele já sabe ler alguma coisa e escrever: deixo-o, para fazer-lhe a vontade, algum tempo na Sé, para que também tome mais amor àquela vida, e depois, apenas o vir com o juízo mais assente, hei de ir adiante com a coisa. Foi em conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que
dançara o minuete na festa do batizado, que era nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade, para arranjar o afilhado, que não queria outra igreja que não fosse a Sé. Felizmente pôde ele ser admitido; com a prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister a um sacristão: ajudar a missa já ele sabia, às outras coisas aperfeiçoou-se em pouco tempo.
Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada.
— E que tal?!... Deus vos guarde, Sr. cura, disse fazendo um cumprimento.
O menino lançou-lhe um olhar de revés, e respondeu entre dentes:
— Eu sou cura, e hei de te curar...
Era aquilo uma promessa de vingança.
— Ora dá-se? continuou a vizinha consigo mesma; aquilo na igreja é um pecado!!
Chegou o menino à Sé impando de contente; parecia-lhe a batina um manto real. Por fortuna houve logo nesse dia dois batizados e um casamento, e ele teve assim ocasião de entrar no pleno exercício de suas funções, em que começou revestindo-se da maior gravidade deste mundo. No outro dia porém o negócio
começou a mudar de figura, e as brejeiradas começaram.
A primeira foi em uma missa cantada. Coube ao pequeno o ficar com uma tocha, e ao companheiro o turíbulo ao pé do altar.
Por infelicidade a vizinha do compadre, a quem o menino prometera curar, sem pensar no que fazia colocou-se perto do altar junto aos dois. Assim que a avistou, o novo sacristão disse algumas palavras a seu companheiro, dando-lhe de olho para a mulher. Daí a pouco colocaram-se os dois disfarçadamente em distância conveniente, e de maneira tal, que ela ficasse pouco mais ou menos com um deles atrás e outro adiante. Começaram então os dois uma obra meritória: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, olhando disfarçado para o altar. A pobre mulher exasperou-se, e disse-lhes não sabemos o quê.
— Estamos te curando, respondeu o menino tranqüilamente.
Vendo que não tirava partido, quis a devota mudar de lugar e sair, porém o aperto era tão grande que o não pôde fazer, e teve de aturar o suplício até o fim.Acabada a festa, dirigiu-se ao mestre-de-cerimônias, e fez uma enorme queixa, que custou aos dois uma tremenda sarabanda. Pouco porém se importaram com isso,
uma vez que tinham realizado o seu plano.

sábado, 13 de abril de 2013

Soneterapia

Entre os poetas modernos brasileiros, pode-se considerar que tiveram muitos "aproveitadores" incompetentes, que diziam fazer poesia moderna e no fundo só escreviam um amontoado de futilidades sem razão, escondidas sob as novas e revolucionárias formas. No entanto, como diria Manuel Bandeira, um poeta, só é poeta se consegue escrever um bom soneto na forma clássica. E isso prova Augusto de Campos. O soneto dele é cheio de "guerra e escarnio". Ao mesmo tempo em que ele faz observações jocosas, de forma surpreendente para estar em um soneto, ele responde quase agressivamente às acusações dos contrários à poesia concreta, da qual ele era um expoente.


Soneterapia - Augusto de Campos



Drummond perdeu a pedra: é drummundano.
João Cabral entrou pra academia,
Custou mas descobriram que caetano
Era o poeta (como eu já dizia)

O concretismo é frio e desumano,
Dizem todos (tirando uma fatia).
E enquanto nós entramos pelo cano,
Os humanos entregam a poesia.

Na geléia geral da nossa história,
Sousândrade Kilkerry Oswald vaiados,
Estão comendo as pedras da vitória.

Quem não se comunica dá a dica:
Tó pra vocês chupins desmemoriados,
Só o incomunicável comunica.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Não Comerei da Alface a Verde Pétala

Um dos mais recentes poetas brasileiros, Vinicius de Moraes provavelmente se imortalizou por uma de suas obras mais simples: "Lá vem o pato, pata aqui, pata acolá. Lá vem o pato para ver o que é que há". Naquele tempo, músicos faziam música e poetas escreviam suas letras. Vinicius de Moraes foi o mestre nessa arte. Escreveu letras para samba, MPB e finalmente músicas infantis as quais são lembradas hoje e certamente por muitas mais gerações. Além disso, ele também é o poeta da boemia moderna, e embora a maior parte da maioria dos poemas não seja propriamente popular, ainda muitas frases prontas que falamos (sem saber na maioria das vezes) são trechos de seus poemas. Seus trabalhos como jornalista e diplomata acabaram se tornando com o passar do tempo irrelevantes, enquanto suas "citações" passam ao futuro.


Não comerei da alface a verde pétala - Vinicius de Moraes


Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: dêem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

domingo, 7 de abril de 2013

Romance LIV ou Do Enxoval Interrompido

Cecilia Meireles, embora não seja muito de meu gosto, é uma famosa poetisa do modernismo brasileiro. Sua principal obras, O Romanceiro da Inconfidência, retrata de forma imaginosa episódios da Inconfidência Mineira, imaginando cenas e fatos, como se ouvisse as pedras de Vila Rica (Ouro Preto) contando. Além dessa obra, ela escreveu muitos outros poemas, sendo vários infantis. O poema a seguir faz parte do Romanceiro da Inconfidência e conta as desventuras de Tomás Antônio Gonzaga, preso logo antes do casamento.


Romance LIV ou do enxoval interrompido - Cecília Meireles


Aqui esteve o noivo,
de agulha e dedal,
bordando o vestido
do seu enxoval.

Em maio, era em maio,
num maio fatal;
feneciam rosas
pelo seu quintal.
Por estrada e monte,
neblina total.
No perfil da lua,
um nimbo mortal.
(Mas quem lê na névoa
o amargo sinal?)

A noite na Vila
é densa e glacial.
O sono, embuçado
em cada beiral.
Quem não dorme, sonha
com seu enxoval.

A agulha, de prata,
e de ouro, o dedal.
Em haste de cera,
ergue o castiçal
para a turva noite
lírio de cristal.

“Sabeis, ó pastora,
daquele zagal que andava num prado
sobrenatural?
Teria inimigo?
Teria rival?”

O sono conversa
em cada poial.

“Sabeis, ó pastora,
quem seja o chacal
que os passos arrasta
de Longe arraial?
Eu vi sua língua:
é um negro punhal.
Que mortes fareja
o imundo animal?”

De prata era a agulha,
e de ouro, o dedal.
Em sonho traçava,
com doce espiral
de brilhantes flores,
novo madrigal.

“Sabeis, ó pastora,
por que o maioral
manda pôr algemas
no louro zagal
que tranqüilo borda
lírico enxoval?”

Estrela de aurora,
fonte matinal,
já vistes e ouvistes
desventura igual?
A agulha partiu-se.
Quebrou-se o dedal.
Romperam-se as flores
- a que vendaval?

 “Procurais os rastos
do infame chacal?
Sumiram-se embaixo
do trono real!”

Soluçam as águas
em seu manancial.
E em sedas que foram
de seda e coral,
vai rolando um triste
orvalho de sal.

“Sabeis, ó pastora,
daquele zagal,
que agora não borda
seu rico enxoval?”

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O autor aos seus versos

Manuel Maria Barbosa du Bocage é dos mais famosos poetas do arcadismo português. Sua família era inimiga do Marquês de Pombal, sendo que seu pai foi preso por este e passou 6 anos na cadeia. Quanto à suas próprias vida e obra, a primeira foi bastante turbulenta, sendo que ele se alistou na Marinha e quase ficou morando no Rio de Janeiro quando passou por lá em sua viagem. Por sua obra, teve problema com a Inquisição e dizem que chegou a ser preso por isso, já depois de ter passado uns anos na cadeia por sua vida desregrada. Parece que isso tudo lhe fez vem, porque depois de livre resolveu se assentar na vida e trabalhou como tradutor tendo arrumado alguns padres bem situados como amigos. Quanto aos seus poemas, a maioria é complexo pela filosofia gnóstica escondida, e foram eles uma forte influência no romantismo português.


O autor aos seus versos - Manuel Maria Barbosa du Bocage


Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz e tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Versos Íntimos

Como expoente de uma parte diferente do período simbolista no Brasil está Augusto dos Anjos. O poeta paraibano, morto com apenas 30 anos é um dos mais voltados ao desespero e angústia da literatura brasileira. Além disso, ele inova ao utilizar termos técnicos de medicina em seus poemas. Seus primeiros versos datam de seus sete anos, mas pela vida breve, teve apenas 1 livro publicado, EU, postumamente intitulado Eu e Outras Poesias, devido a alguns acréscimos. O soneto abaixo, talvez um de seus mais famosos mostra toda a angústia e o desprezo pelo mundo, marcas características do poeta.


Versos Íntimos - Augusto dos Anjos


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!