"A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa."
O trecho abaixo mostra a vida de casada de Inês Pereira com o primeiro marido, "o cavalo", a morte deste, e sua decisão de casamento com o segundo, o "asno"
A Farsa de Inês Pereira - Gil Vicente
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:
Inês
“Quem bem tem e mal escolhe
Por mal que lhe venha não s'anoje.”
Renego da discrição
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios,
E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias,
Vede que já mouros mata
Quem sua mulher maltrata
Sem lhe dar de paz um dia!
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em vale
Nem mouro que chamem Ale:
E assi deve de ser
.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
E que ande a meu mandar
Havia m'eu de vingar
Deste mal e deste dano!
Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz:
Moço — Esta carta vem d’Além
Creio que é de meu senhor.
Inês
Mostrai cá, meu guarda-mor
E veremos o que i vem.
Lê o sobrescrito.
“À mui prezada senhora
Inês Pereira da Grã,
À senhora minha irmã.”
De meu irmão...Venha embora!
Moço
Vosso irmão está em Arzila?
Eu apostarei que i vem
Nova de meu senhor também.
Inês — Já ele partiu de Tavila?
Moço — Há três meses que é passado.
Inês — Aqui virá logo recado
Se lhe vai bem, ou que faz.
Moço — Bem pequena é a carta assaz!
Inês — Carta de homem avisado.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
“Muito honrada irmã,
Esforçai o coração
E tomai por devoção
De querer o que Deus quiser.”
E isto que quer dizer?
“E não vos maravilheis
De cousa que o mundo faça,
Que sempre nos embaraça
Com cousas. Sabei que indo
Vosso marido fugindo
Da batalha pera a vila,
A meia légua de Arzila,
O matou um mouro pastor.”
Moço — Ó meu amo e meu senhor!
Inês — Dai-me vós cá essa chave
E i buscar vossa vida.
Moço — Oh que triste despedida!
Inês
Mas que nova tão suave!
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó,
O Diabo me arrebente!
Pera mim era valente,
E matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado,
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão.
Agora quero tomar
Pera boa vida gozar,
Um muito manso marido.
Não no quero já sabido,
Pois tão caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:
Lianor — Como estais, Inês Pereira?
Inês — Muito triste, Lianor Vaz.
Lianor — Que fareis ao que Deus faz?
Inês — Casei por minha canseira.
Lianor — Se ficaste prenhe basta.
Inês — Bem quisera eu dele casta,
Mas não quis minha ventura.
Lianor
Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer?
Casade-vos, filha minha.
Inês
Jesus! Jesus! Tão asinha!
Isso me haveis de dizer?
Quem perdeu um tal marido,
Tão discreto e tão sabido,
E tão amigo de minha vida?
Lianor
Dai isso por esquecido,
E buscai outra guarida.
Pêro Marques tem, que herdou,
Fazenda de mil cruzados.
Mas vós quereis avisados...
Inês
Não! já esse tempo passou.
Sobre quantos mestres são
Experiência dá lição.
Lianor — Pois tendes esse saber
Querei ora a quem vos quer
Dai ò demo a opinião.
Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:
Inês
Andar! Pêro Marques seja.
Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão.
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.