O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte II
Maquelina à palavra requerimento empalideceu. Fazer um requerimento é um negócio importante, um passo difícil na vida destes seres inofensivos e alheios a processos judiciais, a cuja confraria pertencia a boa mulher.
Mas que remédio! Saiu dali e procurou o presidente da câmara.
Era este um gordo merceeiro, cuja cabeça se podia dizer um vulcão de medidas tendentes todas ao melhoramento público e progresso social. Durante a sua feliz administração dos negócios municipais, contava actos realmente surpreendentes de tino governativo.
Seja-me lícito citar aqui alguns factos da vida pública deste não aproveitado estadista. Os moradores de uma rua estreita, onde os beirais dos telhados fronteiros quase se encontravam a ponto de interceptarem a passagem da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos, de cultivarem frondosos arbustos nas sacadas das habitações, com grande incómodo e prejuízo dos queixosos, para os quais anoitecia mais depressa, graças à sombra impenetrável que projectavam os folhudos ramos na já de si pouco esclarecida rua. O sábio edil legislou à vista disso:
«Ficam proibidas as árvores em todos os lugares onde a vegetação seja impossível.»
Eu penso que se Montesquieu tivesse notícia desta lei havia de apreciá-la, pela admirável concordância com as da imutável natureza. De outra vez os contribuintes pacíficos que habitavam próximo aos arrabaldes, lamentaram-se, em termos legais, pelas incómodas harmonias, com que todas as manhãs os despertavam os carreteiros com a infernal chiadeira de impertinentes carros. Pensava aquela boa gente que a sinfonia de ouverture da criação não perdia nada se lhe suprimissem da orquestra o pouco harmonioso instrumento. Atendendo à justa reclamação dos povos, o judicioso funcionário promulgou que: «Todos os carros que chiassem contra as posturas municipais, pagassem dois mil-réis de multa, sendo metade para o denunciante, dado o caso de serem ouvidos».
Já se vê que chiar contra as posturas era coisa séria; a câmara tinha susceptibilidades e ofendida chegava a multar... os carros. Quando esta medida se discutiu em plena vereação, um dos camaristas levantou-se e deu mostras de querer falar.
— Peço a palavra, sr. presidente.
— Tem a palavra o ilustre colega.
— Eu desejava que se fosse mais severo contra os perturbadores do sono público e se desse maior alcance a esta medida policial, multando todo o carro que chiar, quer seja ouvido, quer não.
O conselho, atendendo porém a que não convinha ser demasiado ríspido com os povos e que os carros não sendo ouvidos, pouco podiam incomodar, adoptou a cláusula do autor do projecto, rejeitando a emenda.
E foi muito bem considerado.
Outra ocasião ainda, ouvindo o nosso homem discutirem dois bacharéis, classe de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniência das Rodas, e vendo-os acordes na necessidade de importantes e radicais reformas nestes estabelecimentos, veio para casa pensativo, e o cérebro, fecundado por aquela ideia, lidou toda a noite em gestação mental, tendo no fim o seu bom sucesso, porquanto pela manhã o magistrado municipal apresentou à aprovação dos colegas a seguinte medida regulamentar:
«Toda a mãe que expuser seu filho sem um bilhete do município, fica tacitamente encarregada da educação deste.»
A entender-se gramaticalmente a coisa, rude tarefa cabia à pobre da mãe, superior ao esforço humano.
Esta medida de um incomensurável alcance económico, por um triz ia passando.
Mas emperrou no advérbio tacitamente, que de facto era a maior palavra do período e que o legislador empregara para o arredondar; ele tinha lá suas ideias a respeito de estilo, não obstante viver antes das últimas reformas dos liceus, na qual pelos modos este assunto foi regulado de uma vez para sempre. Se a lacónica definição de Buffon é verdadeira, se o estilo é o homem, ninguém de facto como o nosso
vereador podia fazer períodos mais rotundos. Mas o corpo camarário viu na frase não sei que sentido maquiavélico, e mostrou escrúpulos.
Em vão o digno chefe de tão respeitável corporação, com aquela abnegação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a substituir esse advérbio por outro qualquer, sem escolha, tais como: restritamente, completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc, etc ; ele só queria salvar a beleza da forma; não houve de que, o conselho, entrando uma vez no caminho da desconfiança, não tinha por costume
recuar.
Esteve ainda assim, vai não vai, a resolver-se pela adopção do categoricamente, agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem esse admitiu, e a medida foi rejeitada. Era pois diante deste vasto talento governativo que Maquelina fora enviada a implorar um diploma de pobre. Louvado seja Deus! até isto se implora!
— Mas — observou o judicioso presidente ao ouvi-la — pobre é todo aquele que não tem dinheiro.
Maquelina concordou. Pudera não. A definição satisfazia a todos os preceitos mencionados no Genuense; curta, clara, etc, e t c ; e mais o nosso vereador não estudara lógica.
O homem continuou:
- E segundo é voz e fama vocês têm mundos e fundos.
Aqui principiava Maquelina a discordar, por infelicidade sua. Em única resposta mostrou os cobres que trazia.
— Eis a minha riqueza.
— Pois sim, pois sim... mas... olhe, disso não quero eu saber. É pobre ? Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e depois,.. depois... isso é com a junta de paróquia.
— Mas...
— Adeus, minha amiga, temos conversado.
E o oráculo emudeceu.
Maquelina ao sair levava uma cara, que seria a sua justificação, se o vereador acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas parece-me poder atestar o contrário. O bom homem chamaria tolo a Laváter, se o
tivesse conhecido.
Dali passou Maquelina a casa do pároco.
Eram horas da sesta e o reverendo dormia; único ponto de contacto que tinha com Homero. E que sono!
Bem pudera de seus paroquiais flancos elevar-se toda a bem provida árvore de Jessé, que está representada na nave direita da igreja dos Franciscanos no Porto, que ele rivalizaria em impassibilidade com
aquele venerável patriarca, que a sustenta.
Quando o foram acordar, o pastor daqueles povos resmungou, moveu-se, voltou-se para o outro lado e... continuou a dormir. À segunda tentativa, tornou a resmungar, tornou a mover-se, a voltar-se para o
outro lado e... tornou a dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfregou os olhos, abriu a boca estrepitosamente e não deu acordo de si; pôs-se a olhar depois para o travesseiro com visíveis tentações
de se precipitar de novo nele; obstou-o a criada, que voltou a chamá-lo â vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o evacuar dos pulmões obstruídos por um catarro crónico, o fungar de uma farta pitada, e enfim apareceu o homem em toda a magnitude da sua... gordura.
Dizem que o erguer do leito é a ocasião em que os monarcas são mais acessíveis a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça coroada, não se parecia neste particular com suas majestades; pelo contrário, se havia para ele horas de mau humor eram as que se seguiam ao momento em que a inexorável força das circunstâncias o obrigava a emergir de entre os lençóis, oceano, onde voluntariamente aquele sol e mergulhava.
— Oh! oh! — bradou o indolente levita ao ver Maquelina — então foi-se o homem?
— Assim o quis Nosso Senhor.
— E vamos a saber, quanto se herdou ?
Maquelina exibiu os quatrocentos réis, que era todo o espólio em metal.
— Histórias da Maria Carocha — resmungou o abade zangado.
— É isto que digo a V. S.*: meu irmão...
— Não me venha contar tonilhos. Diga lá o que quer?
Maquelina expôs o fim da visita. O padre arregalou os olhos.
— Ui! Essa é de barbas! Eu hei-de atestar que você é pobre!
Maquelina fez um sinal afirmativo.
— Ora, santinha, ora. E para isso fez-me acordar de um sono que... que...
— Mas, sr. abade, é a verdade que V. S.* atesta, e senão diga-me onde me encontra a riqueza?
— Seu irmão há-de ter deixado somas fabulosas!
— Pois venha V. Rev.ma ver e dirá depois. Jesus, meu Deus, procurem, procurem, oxalá que achassem, meu divino Pai do Céu
— Enfim, mulher, não me meta em trabalhos; vá ter-se com o regedor, e eu, o mais que posso fazer, é confirmar lá na junta o que ele certificar.
Maquelina passou à regedoria. O regedor era taberneiro, e naquele momento o seu duplo estabelecimento estava atulhado de fregueses.
As largas mãos deste vigilador da ordem pública distribuíam simultaneamente vinho e justiça aos circunstantes, e mais amplas medidas de justiça que de vinho a acreditarmos os consumidores. A entrada de Maquelina causou sensação.
O regedor, em pleno gozo do seu funcionalismo, dignou-se interrogar a irmã do falecido, e os olhos da importante autoridade, pondo nela:
— Então que a traz por aqui, Sr.* Maquelina? — disse com voz benigna. — Não é bonito andar assim já pela rua, quando tem seu irmão morto em casa. Que há-de dizer o público ?!