sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte II

Júlio Dinis é o pseudônimo mais conhecido do escritor Joaquim Guilherme Gomes Coelho. O autor (Porto 1839-1871) foi formado em Medicina, mas não se interessava pela profissão, ao contrário, sua verdadeira paixão era a literatura. Apesar do pouco tempo de vida, deixou uma obra grande entre críticas literárias, poemas, contos e 4 romances. No início de sua vida começou a escrever para jornais, de onde foram pegos os contos para as coletâneas Serões da Província e Inéditos e Esparsos, publicada postumamente. Em 1869 Julio Dinis parte para a Madeira para tratar de tuberculose, diagnosticada alguns anos antes, mas não permanece inativo, escrevendo sempre. No mesmo ano de sua morte, uma sua peça de teatro é representada no Rio de Janeiro, consagrando assim a internacionalização, por assim dizer do autor. Serões da Província, onde se encontra o conto foi publicado em 1869.



O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte II



Maquelina à palavra requerimento empalideceu. Fazer um requerimento é um negócio importante, um passo difícil na vida destes seres inofensivos e alheios a processos judiciais, a cuja confraria pertencia a boa mulher.
Mas que remédio! Saiu dali e procurou o presidente da câmara.
Era este um gordo merceeiro, cuja cabeça se podia dizer um vulcão de medidas tendentes todas ao melhoramento público e progresso social. Durante a sua feliz administração dos negócios municipais, contava actos realmente surpreendentes de tino governativo.
Seja-me lícito citar aqui alguns factos da vida pública deste não aproveitado estadista. Os moradores de uma rua estreita, onde os beirais dos telhados fronteiros quase se encontravam a ponto de interceptarem a passagem da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos, de cultivarem frondosos arbustos nas sacadas das habitações, com grande incómodo e prejuízo dos queixosos, para os quais anoitecia mais depressa, graças à sombra impenetrável que projectavam os folhudos ramos na já de si pouco esclarecida rua. O sábio edil legislou à vista disso:
«Ficam proibidas as árvores em todos os lugares onde a vegetação seja impossível.»
Eu penso que se Montesquieu tivesse notícia desta lei havia de apreciá-la, pela admirável concordância com as da imutável natureza. De outra vez os contribuintes pacíficos que habitavam próximo aos arrabaldes, lamentaram-se, em termos legais, pelas incómodas harmonias, com que todas as manhãs os despertavam os carreteiros com a infernal chiadeira de impertinentes carros. Pensava aquela boa gente que a sinfonia de ouverture da criação não perdia nada se lhe suprimissem da orquestra o pouco harmonioso instrumento. Atendendo à justa reclamação dos povos, o judicioso funcionário promulgou que: «Todos os carros que chiassem contra as posturas municipais, pagassem dois mil-réis de multa, sendo metade para o denunciante, dado o caso de serem ouvidos».
Já se vê que chiar contra as posturas era coisa séria; a câmara tinha susceptibilidades e ofendida chegava a multar... os carros. Quando esta medida se discutiu em plena vereação, um dos camaristas levantou-se e deu mostras de querer falar.
— Peço a palavra, sr. presidente.
— Tem a palavra o ilustre colega.
— Eu desejava que se fosse mais severo contra os perturbadores do sono público e se desse maior alcance a esta medida policial, multando todo o carro que chiar, quer seja ouvido, quer não.
O conselho, atendendo porém a que não convinha ser demasiado ríspido com os povos e que os carros não sendo ouvidos, pouco podiam incomodar, adoptou a cláusula do autor do projecto, rejeitando a emenda.
E foi muito bem considerado.
Outra ocasião ainda, ouvindo o nosso homem discutirem dois bacharéis, classe de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniência das Rodas, e vendo-os acordes na necessidade de importantes e radicais reformas nestes estabelecimentos, veio para casa pensativo, e o cérebro, fecundado por aquela ideia, lidou toda a noite em gestação mental, tendo no fim o seu bom sucesso, porquanto pela manhã o magistrado municipal apresentou à aprovação dos colegas a seguinte medida regulamentar:
«Toda a mãe que expuser seu filho sem um bilhete do município, fica tacitamente encarregada da educação deste.»
A entender-se gramaticalmente a coisa, rude tarefa cabia à pobre da mãe, superior ao esforço humano.
Esta medida de um incomensurável alcance económico, por um triz ia passando.
Mas emperrou no advérbio tacitamente, que de facto era a maior palavra do período e que o legislador empregara para o arredondar; ele tinha lá suas ideias a respeito de estilo, não obstante viver antes das últimas reformas dos liceus, na qual pelos modos este assunto foi regulado de uma vez para sempre. Se a lacónica definição de Buffon é verdadeira, se o estilo é o homem, ninguém de facto como o nosso
vereador podia fazer períodos mais rotundos. Mas o corpo camarário viu na frase não sei que sentido maquiavélico, e mostrou escrúpulos.
Em vão o digno chefe de tão respeitável corporação, com aquela abnegação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a substituir esse advérbio por outro qualquer, sem escolha, tais como: restritamente, completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc, etc ; ele só queria salvar a beleza da forma; não houve de que, o conselho, entrando uma vez no caminho da desconfiança, não tinha por costume
recuar.
Esteve ainda assim, vai não vai, a resolver-se pela adopção do categoricamente, agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem esse admitiu, e a medida foi rejeitada. Era pois diante deste vasto talento governativo que Maquelina fora enviada a implorar um diploma de pobre. Louvado seja Deus! até isto se implora!
— Mas — observou o judicioso presidente ao ouvi-la — pobre é todo aquele que não tem dinheiro.
Maquelina concordou. Pudera não. A definição satisfazia a todos os preceitos mencionados no Genuense; curta, clara, etc,  e t c ; e mais o nosso vereador não estudara lógica.
O homem continuou:
- E segundo é voz e fama vocês têm mundos e fundos.
Aqui principiava Maquelina a discordar, por infelicidade sua. Em única resposta mostrou os cobres que trazia.
— Eis a minha riqueza.
— Pois sim, pois sim... mas... olhe, disso não quero eu saber. É pobre ? Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e depois,.. depois... isso é com a junta de paróquia.
— Mas...
— Adeus, minha amiga, temos conversado.
E o oráculo emudeceu.
Maquelina ao sair levava uma cara, que seria a sua justificação, se o vereador acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas parece-me poder atestar o contrário. O bom homem chamaria tolo a Laváter, se o
tivesse conhecido.
Dali passou Maquelina a casa do pároco.
Eram horas da sesta e o reverendo dormia; único ponto de contacto que tinha com Homero. E que sono!
Bem pudera de seus paroquiais flancos elevar-se toda a bem provida árvore de Jessé, que está representada na nave direita da igreja dos Franciscanos no Porto, que ele rivalizaria em impassibilidade com
aquele venerável patriarca, que a sustenta.
Quando o foram acordar, o pastor daqueles povos resmungou, moveu-se, voltou-se para o outro lado e... continuou a dormir. À segunda tentativa, tornou a resmungar, tornou a mover-se, a voltar-se para o
outro lado e... tornou a dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfregou os olhos, abriu a boca estrepitosamente e não deu acordo de si; pôs-se a olhar depois para o travesseiro com visíveis tentações
de se precipitar de novo nele; obstou-o a criada, que voltou a chamá-lo â vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o evacuar dos pulmões obstruídos por um catarro crónico, o fungar de uma farta pitada, e enfim apareceu o homem em toda a magnitude da sua... gordura.
Dizem que o erguer do leito é a ocasião em que os monarcas são mais acessíveis a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça coroada, não se parecia neste particular com suas majestades; pelo contrário, se havia para ele horas de mau humor eram as que se seguiam ao momento em que a inexorável força das circunstâncias o obrigava a emergir de entre os lençóis, oceano, onde voluntariamente aquele sol e mergulhava.
— Oh! oh! — bradou o indolente levita ao ver Maquelina — então foi-se o homem?
— Assim o quis Nosso Senhor.
— E vamos a saber, quanto se herdou ?
Maquelina exibiu os quatrocentos réis, que era todo o espólio em metal.
— Histórias da Maria Carocha — resmungou o abade zangado.
— É isto que digo a V. S.*: meu irmão...
— Não me venha contar tonilhos. Diga lá o que quer?
Maquelina expôs o fim da visita. O padre arregalou os olhos.
— Ui! Essa é de barbas! Eu hei-de atestar que você é pobre!
Maquelina fez um sinal afirmativo.
— Ora, santinha, ora. E para isso fez-me acordar de um sono que... que...
— Mas, sr. abade, é a verdade que V. S.* atesta, e senão diga-me onde me encontra a riqueza?
— Seu irmão há-de ter deixado somas fabulosas!
— Pois venha V. Rev.ma ver e dirá depois. Jesus, meu Deus, procurem, procurem, oxalá que achassem, meu divino Pai do Céu
— Enfim, mulher, não me meta em trabalhos; vá ter-se com o regedor, e eu, o mais que posso fazer, é confirmar lá na junta o que ele certificar.
Maquelina passou à regedoria. O regedor era taberneiro, e naquele momento o seu duplo estabelecimento estava atulhado de fregueses.
As largas mãos deste vigilador da ordem pública distribuíam simultaneamente vinho e justiça aos circunstantes, e mais amplas medidas de justiça que de vinho a acreditarmos os consumidores. A entrada de Maquelina causou sensação.
O regedor, em pleno gozo do seu funcionalismo, dignou-se interrogar a irmã do falecido, e os olhos da importante autoridade, pondo nela:
— Então que a traz por aqui, Sr.* Maquelina? — disse com voz benigna. — Não é bonito andar assim já pela rua, quando tem seu irmão morto em casa. Que há-de dizer o público ?!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O Espólio do sr. Cipriano - Parte I

Júlio Dinis é um dos principais romancistas do Romantismo português. Para os próximos posts, colocarei o conto O Espólio do Sr. Cipriano. É um conto leve, divertido, inocente que retrata a inocência da ignorância. Sua publicação, primeiramente em jornal, consta agora no livro Serões da Província, uma coletânea de contos do autor. Nesses contos, assim como em seus romances, o autor descreve o campo português "em português". Pelo modo da descrição, imaginamos o sol, a relva, o vento, o resfolegamento para se chegar ao alto de cada morro, o sorriso ao observar a estrada de poeira, lá em baixo, mas não tão baixo, a alegria, o espírito leve e a saudade de não se sabe o quê. Nesse conto, porém há principalmente a inocência pura das pessoas simples.



O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte I


Desde que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à evidência dos factos desarraigá-la. Parece que à medida que um por um se vão quebrando os laços que a prendiam à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceitar, mais atractivos ela ostenta à fantasia popular, sempre afeiçoada ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das campinas.
Quando o povo vê fugir, por inverosímil, do campo da discussão um facto controvertido, é quanto mais se apressa a recebê-lo como dogma, a adoptá-lo com a cegueira da fé; é então que o transmite aos filhos, à maneira de um novo artigo do seu credo religioso, e olha para o que se atreve a levantar a mão iconoclasta contra esses vagos objectos do seu culto ideal como para um ímpio, digno da fulminação celeste.
De historiadores e biógrafos se ri; não há provas nem documentos que valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou ; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a exactidão à poesia, e admitindo em seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crónicas dos tempos passados é através das lendas que se pode procurar a história. Adornada com as galas e louçainhas do maravilhoso, é que o povo se apraz de acolher a tradição. Despida às mãos do historiador austero, parece afectar-lhe tão escandalosamente a vista, como a dos mais castos monges da Tebaida as formas nuas de tentadoras aparições.
Igualmente, ao lado da biografia exacta de um indivíduo, ainda dos mais obscuros, o povo refere de ordinário outra, menos documentada talvez, porém sempre mais curiosa.Com olhar perscrutador penetra o seio das famílias a descobrir aí factos recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais facilmente do que nos da vida pública, se reflectem os caracteres e as índoles.
Não julgueis que lhe basta a enumeração das batalhas, dos feitos brilhantes, dos serviços humanitários, dos actos civis do herói do dia; quer vê-lo em família, depois de despir a farda, a toga ou os arminhos, para envergar o modesto robe de chambre; aspira a devassar-lhe no modo de viver intimo e a estudar-lhe os hábitos; obriga a personagem da história a representar diante de si o papel de filho, de irmão, de amante, de esposo e de pai no drama da vida, e é então que mais interesse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe falecem as informações, inventa, recorre ao inesgotável tesouro da imaginação senão a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo verdadeiramente admirável ! Há o que quer que é sobrenatural na maneira por que se lhe revelam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas, interessadas ambas em conservá-los ignorados ; não espera por provas, satisfaz-se já com indícios ; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam, e, devemos confessá-lo, se em certos casos esta antecipação o leva ao erro, muitas vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o conduz a verdade.
Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a ciência humana. De onde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos fortes, os ignorantes e os ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece?
Suscita-se ãs vezes sobre qualquer indivíduo uma opinião que se diz pública, somente porque cada qual em particular se não atreve a reconhecê-la por sua; os factos conhecidos da vida desse homem parece desmentirem-na, todas as aparências lhe são contrárias, é humanamente impossível encontrar algures os fundamentos dessa crença, nascida não se sabe onde, propagada não se sabe como; e contudo persiste. Porquê? Quem o pode dizer? É, a meu ver, um facto da ordem de outros que observa o naturalista na história dos animais. É um fenomeno de instinto.
Na aproximação do Inverno, as aves viajoras reúnem-se em bandos para desertarem das paragens que parecia oferecerem-lhes ainda por algum tempo os últimos calores de uma estação favorável. Que indício lhes revelou o perigo ? Quem lhes apontou o caminho de mais amenas regiões ? O instinto, respondem os filósofos; e a mesma lesposta obtereis, se o interrogardes sobre tantos outros maravilhosos actos que nos surpreendem, nos costumes de certas famílias zoológicas.
Concedam, pois, também ao povo instintos, instintos que o fazem adivinhar factos ocultos, como a ave pressente o Inverno, instintos sobre os quais se elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio,
mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde.
O povo tem uma fisiologia especial, que ainda está por escrever; concurso de individualidades tão heterogéneas, dá uma resultante, cuja noção não nos pode vir só do conhecimento isolado dos componentes.
Quem o fosse estudar por uma análise minuciosa, quem, por um quase processo anatómico o decompusesse em elementos, para um a um os examinar com escrupuloso cuidado, não o teria compreendido; não seria mais feliz do que se procurasse resolver o problema da vida dissecando um cadáver, e aplicando o microscópio a cada fibra de seus tecidos e órgãos. Onde os homens se reúnem em povo, uma influência oculta se lhes associa: uma como inteligência comum, daí os enigmas da multidão.
A solução destes enigmas não a procurem portanto nos indivíduos, que neles não reside; está na entidade colectiva; assim como o modo de reagir do sal neutro não se encontra no ácido, nem na base,
seus elementos únicos; é o resultado da combinação. Sirvam estas reflexões de prefácio ao caso modesto e obscuro que vamos narrar e que as exemplifica.
Por uma das tais vozes interiores, que entretém o povo dos mais recatados mistérios da vida de família, como se linguareiro duende lhos andasse segredando ao ouvido, era que em uma pequena cidade da
província do Minho, havia muito se tornara opinião geral que Cipriano Martins, octogenário que vivia miseravelmente na mais estreita e mal esclarecida rua do menos limpo e povoado bairro daquela já de si não
muito apetecível terra, não obstante tais aparências pouco inculcadoras, possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela mais sórdida e inqualificável sovinice.
Nada podia modificar a opinião pública a este respeito; era absoluta, geral, intransigente, incapaz de vacilar, estável no seu posto, que defendia heroicamente contra o ataque combinado de todas as aparências ; sublime de pertinácia, admirável de resistência.
Nunca experimentara destas oscilações vulgares nas mais enraizadas crenças; nunca passara por as alternativas de desfavor que até as ideias mais generosas sofrem no correr das épocas, nunca; nem
quando os aguçados cotovelos do velho Cipriano rompiam escandalosamente através das mangas coçadas e beneméritas do seu casacão de saragoça; nem quando aos olhos dos comentadores se patenteavam as laceradas plantas... das botas colossais de que o nosso Harpagão usava, ou as numerosas cicatrizes — vestígios honrosos de longos anos de assinalados serviços — que lhe crivavam as calças, onde cada fábrica de tecidos tinha um espécime de seus produtos combinados todos em artístico mosaico.
Cada vez que o inofensivo tema dos longos e pouco misericordiosos comentários populares, entrava em uma loja a comprar os parcos materiais de sua diária alimentação e estendia a mão para receber os trocos miúdos, aos quais, como outro qualquer, tinha direitos incontestáveis e garantidos por lei, havia nos circunstantes certo resfolegar de mofa que, ao voltar costas o velho, degenerava em bem significativas e nada equívocas exclamações.
— Olhem o unhas de fome!
— Sume-te, porco!
— É capaz de se enforcar por um vintém !
— Se lhe caísse um pataco ao Inferno, atirava-se lá para apanhá-lo, o tinhoso.
— Sovina!
— A pobre irmã morre à míngua por causa da mesquinhez deste tesoureiro do Diabo.
— Come duas sardinhas barrentas, e cozinha só de três em três dias para não fazer despesa em lenha! Podem crê-lo ?
— Junta, junta, para outros to gastarem!
— O peso do teu cofre é que te há-de afogar na caldeira de Pêro Botelho!
E assim por diante iam as apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para a reputação do modesto velho, cujos nervos felizmente se não supraexcitavam com tais estímulos. Tinha uns invejáveis nervos o Sr. Cipriano! a única das suas qualidades que lhe podiam invejar as leitoras. Não há vício menos popular do que o da avareza, pela razão de serem poucos os que com ele lucram.
Assim Cipriano Martins era uma personagem antipática para os seus compatriotas.
Mas quem lhe vira o dinheiro? quem lhe descobrira a riqueza? Neste momento cada qual, interrogado à parte, encolhia os ombros, prolongava os beiços, enrugava a fronte, e respondia:
— Diz-se.
Santa palavra! salvatério das asserções arrojadas! como a consciência fica tranquila quando, após uma afirmação, cuja responsabilidade não quer, a boca oficiosa te pronuncia! Descendente em linha recta daquele traditur dos historiadores romanos, tu és, como teu ilustre avô, o melhor e mais universal excipiente, em que se administram ao público fortes doses de boatos, que ele engole de mais boamente do que quantas pílulas tem arredondado de Hipócrates para cá os dedos dos boticários ou apregoado os Holloways de todos os tempos.
Cipriano Martins tinha uma vez por ano as suas liberalidades, circunstância que, longe de amenizar a rudeza dos juízos públicos a seu respeito, antes a exacerbava; pois de facto nunca mais alto subiam as murmurações como quando em sexta-feira santa saía das algibeiras do sóbrio velho para as dos pobres da freguesia a quantia realmente importante de... cem réis em moedas de cinco. Então é que era ouvir o povo.
— Arrancou hoje cem fibras do coração.
— Tem para chorar cem dias, o velho.
— E para jejuar outros tantos.
— Se isto assim continua, aparece-nos de alguma vez o homem enforcado em sábado de Aleluia.
— Melhor, escusa o povo de queimar outro Judas.
Quando se entra na via das concessões é necessário não dar passos acanhados; sob pena de aumentar ainda mais a indisposição dos ânimos.
Consideração esta de longo alcance político, não obstante as aparências modestas que a revestem aqui.
Cipriano Martins caiu doente, e não chamou médico. A câmara, que adoptava o pensamento público sobre o estado financeiro do seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro dos pobres, razão pela qual o não visitou o médico de partido.
A câmara andou assisada nisto e mostrou-se convencida da seguinte verdade, saída da boca de um grande vulto político: «Quando os governos não tomam espontaneamente a iniciativa no movimento das massas, são arrastados por ela.»
Ora a câmara, que era o governo e não pouco respeitável, não tinha grande vontade de ser arrastada; um dos vereadores, mais que todos, em cuja caixa de rapé estava representado em gravura o fim trágico de Mazeppa, sentia de si para si um estremeção de grande desconforto só de ouvir o termo. Por isso, a câmara adoptou a opinião das massas,
Esta subiu ao auge da indignação, vendo Cipriano desprezar a medicina.
— Olhem o miserável a regatear às portas da morte o preço da vida!
— O homem tem razão — respondeu o barbeiro, a quem por consenso unânime fora decretado o diploma de espirituoso da terra — o homem tem razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.
Este dito do ilustrado superintendente das mais respeitáveis barbas da freguesia foi repetido em todos os círculos com geral aplauso; e a reputação de aguçado satírico, de que há muito gozava o digno colega de Figaro, aumentou, se de aumento era susceptível ainda.
Cipriano Martins morreu, e então é que a curiosidade pública se pôs alerta, e, para entreter o tempo de espera, prestou ouvidos às historietas da imaginação. Esta fez o seu dever, nada deixando a desejar.
Cipriano a cerrar os olhos, e o público mais do que nunca a tomá-lo à sua conta. Discutiu-se-lhe a herança, avaliou-se-lhe a fortuna, apontaram-se os herdeiros, inventaram-se testamentos, fantasiaram-se cláusulas absurdas, anteviram-se demandas, devassaram-se esconderijos, arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas monstruosas; isto tudo durante vinte e quatro horas, no fim das quais nem riquezas, nem esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem cláusulas e, por conseguinte, nem herdeiros nem demandas vieram justificar a geral expectativa.
Foi um desapontamento, que, a falar verdade, custou a digerir; os melhores estômagos imparam com ele e mais de uma vez foi regurgitado. E toda aquela boa gente se punha então a ruminá-lo de seu vagar, sem que o fizesse mais digerível.
A irmã do morto, que de si para si nunca nutrira grandes esperanças, porque nunca tivera fé nas riquezas do mano, apresentou-se nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a pedir-lhe que providenciasse para se fazer o enterro do velho Cipriano, pois, nas gavetas, só lhe encontrara uns cobres, que não bastavam para as despesas exigidas pela solenidade.
O administrador viera céptico de Coimbra, doença que apanhara nas margens do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crónica no concelho, que, como diziam os jornais da época, tão dignamente administrava. Por isso olhou para a pobre Maquelina — pois era esse o nome dela — através dos vidros da luneta pendente, ao mesmo tempo que o mais incrédulo sorriso, que o espelho lhe aconselhara, vinha
encrespar-lhe espirituosamente o lábio superior. Ao desbaste de crenças, que este magistrado sofrera, tinha por felicidade sobrevivido entre poucas a crença no espelho, um dos principais conselheiros a quem devia a manutenção da dignidade administrativa.
— Com que então só uns cobritos, diz vossemecê, hem?
O bacharel fizera a descoberta de que este hem lhe dava às palavras certa melodia de bom gosto, e por isso o adoptara.
— Eis tudo quanto possuo — respondeu Maquelina, mostrando em patacos um cruzado, quando muito — V. S.ª bem vê — continuou — meu irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há muito em decadência; ele, coitado, estava velho e não queria oficiais... e agora com a moléstia... por mais economias que a gente fizesse, sempre eram despesas certas e nenhum dinheiro a apurar.
O administrador teve aqui um movimento de lábios, expressivo de inveterada descrença; e como para mais depressa se livrar do contacto de um ser humano, respondeu secamente:
— Faça, se quiser, um requerimento à câmara, porque seu irmão não figura no quadro dos pobres.
E mais não disse.

sábado, 24 de novembro de 2012

Tiro de Guerra No. 35


Antônio Alcântara Machado escreveu principalmente sobre os imigrantes. Foi ele quem nos deixou um relato entre biográfico e literário da realidade paulista em transformação entre as décadas de 1920 e 1930. Período que transformou a pacata cidade de entroncamentos ferroviários no princípio da atual metrópole. Durante a primeira metade do século XX a população decuplicou. E quem Alcântara Machado retrata por sua participação forte nesse crescimento são os imigrantes italianos. Os quais vieram para trabalhar como costureiras, como Carmela, que se encheram de patriotismo brasileiro como Aristodemo e que enriqueceram e se misturaram à alta sociedade como Adriano Meli. E muitos de nós podemos ver a realidade em pais, avós que conhecemos e antigos fatos da vida. Mas foi devido à sua morte precoce, em 1935 que a obra de Alcântara Machado é tão reduzida. No entanto seus contos-crônicas são parte da literatura e objeto de admiração.


Tiro de Guerra número 35 - Alcântara Machado



No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:
- Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.
Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.
Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina.
Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.
E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Lingüiça) casou com um chofer de praça na policia.
Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.
Sua linha: Praça do Patriarca - Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras.
Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.
E não queria mesmo outra vida.
Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:
"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor.? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata..."
Fosse Mlle Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria. E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.035.
- Companhia! Per... filar!
No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.
- Meia volta! Vol... ver!
O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada.
- Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!
De novo não prestou.
- Firme!
Pareciam estacas.
- Meia volta!
Tremeram.
- Vol... ver!
Volveram.
- Abém!
Aristodemo era o base da segunda esquadra.
Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um. Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma espécie de.
- Você conhece o hino nacional, criatura?
- Puxa, se conheço, Seu Sargento!
- Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.
Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias. E o primeiro ensaio foi logo à noite.
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...
- Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!
Ou-viram do I-piranga as margens plácidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!
- Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE!
E o hino rolou ribombando:
... a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!
E o sol da li-berdade em raios ful...
De repente um barulho na segunda esquadra.
- Que isbregue é esse aí, criaturas?
Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.
- Está suspenso o ensaio. Podem debandar.
- Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!
- Que é que você está me dizendo, Aristodemo?
- Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era... um... eu chamei ele de... eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser... o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.
- Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.
"Ordem do Dia
De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.081, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.081, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partirdesta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções. Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!
São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."
Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.
Na mesma linha: Praça do Patriarca - Lapa.


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Rua de Rimas

O português é, como se diz, uma língua poética por natureza. Em Guilherme de Almeida, o poeta paulista tem em suas inúmeras obras poesias para e do cotidiano da primeira metade do século XX brasileiro. O poeta modernista, apesar de não ser um grande nome do período tem em suas obras toda a poesia da simplicidade. Os versos a seguir, publicados primeiramente no jornal estão entre os preferidos do autor, cuja obra mais conhecida é a Canção do Expedicionário. Figura dita simpática por quem o conheceu, foi dos grandes promotores do período ufanista da metrópole de São Paulo, a primeira metade do século XX.


A Rua de Rimas - Guilherme de Almeida


A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas, singelas, amarelas,
douradas, descabeladas, debruçadas como namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso;
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rara de opala de uma sala uma escala clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampiões espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata que mata…);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio…
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calças nuas,
correndo paralelamente, como a sorte diferente de toda gente, para a frente,
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranqüilidade: RUA DA FELICIDADE…

domingo, 18 de novembro de 2012

O sol é grande, caem co'a calma as aves

Francisco Sá de Miranda foi o introdutor do soneto na forma clássica além dos versos decassílabos em Portugal. Depois de ter estudado em Lisboa, viajou para a Itália onde teve contato com inúmeras personalidades literárias do tempo e de onde trouxe a nova estética de poesia em 1526. Há entre ele e Gil Vicente uma rixa famosa da qual não se sabe bem os motivos. Embora ele tenha sido à sua época menos apreciado do que o rival, é certo que foi o grande influenciador de Camões e foi sua moda literária que se estabeleceu e continuou na língua portuguesa.



O sol é grande, caem co'a calma as aves - Sá de Miranda



O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que soe ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-me-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O tempo passa? Não passa


Carlos Drummond de Andrade foi o último grande poeta brasileiro. Ou simplesmente o último poeta brasileiro. Foi o grande expoente da terceira geração do modernismo e morreu em 1987. Seu poema mais famoso, "no meio do caminho tinha uma pedra" não é nem o mais bonito, nem o mais poético, nem o mais filosófico, nem o mais profundo. Acho que é o mais fácil de decorar, o mais clichê, talvez. O poema a seguir também não é o mais nada. É simplesmente um punhado de versos de amor bonitinhos, leves e quase ingênuos. Bom para ler e mais ainda para se surpreender no meio dos pesados e/ou filosóficos poemas do autor.



O tempo passa? Não passa - Carlos Drummond de Andrade


O tempo passa ? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Juca Pirama - Parte II


Ao lermos o poema inteiro, vemos as diferenças de ritmos e cadencias de cada parte. Como cada parte expressa uma situação, há um tipo de ritmo para cada uma. A primeira e última partes são festas dos Timbiras, assim, a cadência é a mesma. E só no fim, descobre-se o eu-lírico da poesia, que é como que narrada em primeira pessoa por um velho timbira, em outra festa, mas sempre enquanto ele "pratica d'outrora". Também a maldição do pai mostra a toada triste e a história contada pelo moço tupi entrecortada e ofegante pelo temor. Vale a pena uma leitura integral para se reparar não só na história mas na relação com os ritmos de cada parte do poema.



Juca Pirama - Gonçalves Dias - Parte II



VI

- Filho meu, onde estás? 
- Ao vosso lado; 
Aqui vos trago provisões; tomai-as, 
As vossas forças restaurai perdidas, 
E a caminho, e já! 
- Tardaste muito! 
Não era nado o sol, quando partiste, 
E frouxo o seu calor já sinto agora! 
- Sim demorei-me a divagar sem rumo, 
Perdi-me nestas matas intrincadas, 
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; 
Convém partir, e já! 
- Que novos males 
Nos resta de sofrer? - que novas dores, 
Que outro fado pior Tupã nos guarda? 
- As setas da aflição já se esgotaram, 
Nem para novo golpe espaço intacto 
Em nossos corpos resta. 
- Mas tu tremes! 
- Talvez do afã da caça.... 
- Oh filho caro! 
Um quê misterioso aqui me fala, 
Aqui no coração; piedosa fraude 
Será por certo, que não mentes nunca! 
Não conheces temor, e agora temes? 
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, 
E contra o seu querer não valem brios. 
Partamos!... - 
E com mão trêmula, incerta 
Procura o filho, tacteando as trevas 
Da sua noite lúgubre e medonha. 
Sentindo o acre odor das frescas tintas, 
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente... 
Do filho os membros gélidos apalpa, 
E a dolorosa maciez das plumas 
Conhece estremecendo: - foge, volta, 
Encontra sob as mãos o duro crânio, 
Despido então do natural ornato!... 
Recua aflito e pávido, cobrindo 
Às mãos ambas os olhos fulminados, 
Como que teme ainda o triste velho 
De ver, não mais cruel, porém mais clara, 
Daquele exício grande a imagem viva 
Ante os olhos do corpo afigurada. 
Não era que a verdade conhecesse 
Inteira e tão cruel qual tinha sido; 
Mas que funesto azar correra o filho, 
Ele o via; ele o tinha ali presente; 
E era de repetir-se a cada instante. 
A dor passada, a previsão futura 
E o presente tão negro, ali os tinha; 
Ali no coração se concentrava, 
Era num ponto só, mas era a morte!

- Tu prisioneiro, tu? 
- Vós o dissestes. 
- Dos índios? 
- Sim. 
- De que nação? 
- Timbiras. 
- E a muçurana funeral rompeste, 
Dos falsos manitôs quebrastes maça... 
- Nada fiz... aqui estou. 
- Nada! - 
Emudecem; 
Curto instante depois prossegue o velho: 
- Tu és valente, bem o sei; confessa, 
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo! 
- Nada fiz; mas souberam da existência 
De um pobre velho, que em mim só vivia.... 
- E depois?... 
- Eis-me aqui. 
- Fica essa taba?

- Na direção do sol, quando transmonta. 
- Longe? 
- Não muito. 
- Tens razão: partamos. 
- E quereis ir?... 
- Na direção do acaso.


VII

"Por amor de um triste velho, 
Que ao termo fatal já chega, 
Vós, guerreiros, concedestes 
A vida a um prisioneiro. 
Ação tão nobre vos honra, 
Nem tão alta cortesia 
Vi eu jamais praticada 
Entre os Tupis, - e mas foram 
Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido, 
Nem nos combates por armas, 
Nem por nobreza nos atos; 
Aqui venho, e o filho trago. 
Vós o dizeis prisioneiro, 
Seja assim como dizeis; 
Mandai vir a lenha, o fogo, 
A maça do sacrifício 
E a muçurana ligeira: 
Em tudo o rito se cumpra! 
E quando eu for só na terra, 
Certo acharei entre os vossos, 
Que tão gentis se revelam, 
Alguém que meus passos guie; 
Alguém, que vendo o meu peito 
Coberto de cicatrizes, 
Tomando a vez de meu filho, 
De haver-me por se ufane!" 
Mas o chefe dos Timbiras, 
Os sobrolhos encrespando, 
Ao velho Tupi guerreiro 
Responde com tôrvo acento:

- Nada farei do que dizes: 
É teu filho imbele e fraco! 
Aviltaria o triunfo 
Da mais guerreira das tribos 
Derramar seu ignóbil sangue: 
Ele chorou de cobarde; 
Nós outros, fortes Timbiras, 
Só de heróis fazemos pasto. -

Do velho Tupi guerreiro 
A surda voz na garganta 
Faz ouvir uns sons confusos, 
Como os rugidos de um tigre, 
Que pouco a pouco se assanha!


VIII

"Tu choraste em presença da morte? 
Na presença de estranhos choraste? 
Não descende o cobarde do forte; 
Pois choraste, meu filho não és! 
Possas tu, descendente maldito 
De uma tribo de nobres guerreiros, 
Implorando cruéis forasteiros, 
Seres presa de via Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra, 
Sem arrimo e sem pátria vagando, 
Rejeitado da morte na guerra, 
Rejeitado dos homens na paz, 
Ser das gentes o espectro execrado; 
Não encontres amor nas mulheres, 
Teus amigos, se amigos tiveres, 
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia, 
Nem as cores da aurora te ameiguem, 
E entre as larvas da noite sombria 
Nunca possas descanso gozar: 
Não encontres um tronco, uma pedra, 
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, 
Padecendo os maiores tormentos, 
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre; 
Murchem prados, a flor desfaleça, 
E o regato que límpido corre, 
Mais te acenda o vesano furor; 
Suas águas depressa se tornem, 
Ao contacto dos lábios sedentos, 
Lago impuro de vermes nojentos, 
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido, 
Creste e punja teus membros malditos 
E oceano de pó denegrido 
Seja a terra ao ignavo tupi! 
Miserável, faminto, sedento, 
Manitôs lhe não falem nos sonhos, 
E do horror os espectros medonhos 
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso 
Que o teu corpo na terra embalsame, 
Pondo em vaso d’argila cuidoso 
Arco e frecha e tacape a teus pés! 
Sê maldito, e sozinho na terra; 
Pois que a tanta vileza chegaste, 
Que em presença da morte choraste, 
Tu, cobarde, meu filho não és."


IX

Isto dizendo, o miserando velho 
A quem Tupã tamanha dor, tal fado 
Já nos confins da vida reservada, 
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias 
Da sua noite escura as densas trevas 
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára! 
O grito que escutou é voz do filho, 
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes 
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma! 
- Esse momento só vale a pagar-lhe 
Os tão compridos trances, as angústias, 
Que o frio coração lhe atormentaram

De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. 
Ele que em tanta dor se contivera, 
Tomado pelo súbito contraste, 
Desfaz-se agora em pranto copioso, 
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem, 
Gritos, imprecações profundas soam, 
Emaranhada a multidão braveja, 
Revolve-se, enovela-se confusa, 
E mais revolta em mor furor se acende. 
E os sons dos golpes que incessantes fervem, 
Vozes, gemidos, estertor de morte 
Vão longe pelas ermas serranias 
Da humana tempestade propagando 
Quantas vagas de povo enfurecido 
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo 
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, 
Aturado labor de tantos anos, 
Derradeiro brasão da raça extinta, 
De um jacto e por um só se aniquilasse.

- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, 
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, 
E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços 
Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo bradando: 
"Este, sim, que é meu filho muito amado!

"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, 
"Corram livres as lágrimas que choro, 
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."


X

Um velho Timbira, coberto de glória, 
Guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro 
Cantar prisioneiro 
Seu canto de morte, que nunca esqueci: 
Valente, como era, chorou sem ter pejo; 
Parece que o vejo, 
Que o tenho nest’hora diante de mi.

"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! 
Pois não, era um bravo; 
Valente e brioso, como ele, não vi! 
E à fé que vos digo: parece-me encanto 
Que quem chorou tanto, 
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória, 
Guardava a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi. 
E à noite nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!"

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Juca Pirama - Parte I



Embora todos saibamos a inverossimilhança do ideal de índio narrada por Gonçalves Dias e o abismo de diferença entre o tupi e timbiras representados e os verdadeiros, não se pode deixar de apreciar a excelente poesia. Juca Pirama é o poema épico brasileiro. Ou o épico índio. Mostra um índio que representa uma nação, ou antes todas as nações de índios. O herói no entanto passa por momentos de desonra que o elevam ainda mais nos momentos de honra e glória. Além disso é um guerreiro com sentimentos. A única coisa que o faz vacilar ante a morte é o amor pelo pai. E isso o faz ainda mais heróico.



Juca Pirama - Gonçalves Dias - Parte I



I-Juca Pirama

No meio das tabas de amenos verdores, 
Cercadas de troncos - cobertos de flores, 
Alteiam-se os tetos d’altiva nação; 
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, 
Temíveis na guerra, que em densas coortes 
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória, 
Já prélios incitam, já cantam vitória, 
Já meigos atendem à voz do cantor: 
São todos Timbiras, guerreiros valentes! 
Seu nome lá voa na boca das gentes, 
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, 
As armas quebrando, lançando-as ao rio, 
O incenso aspiraram dos seus maracás: 
Medrosos das guerras que os fortes acendem, 
Custosos tributos ignavos lá rendem, 
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro, 
Onde ora se aduna o concílio guerreiro 
Da tribo senhora, das tribos servis: 
Os velhos sentados praticam d’outrora, 
E os moços inquietos, que a festa enamora, 
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto, 
Sua tribo não diz: - de um povo remoto 
Descende por certo - dum povo gentil; 
Assim lá na Grécia ao escravo insulano 
Tornavam distinto do vil muçulmano 
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro 
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro 
Assola-se o teto, que o teve em prisão; 
Convidam-se as tribos dos seus arredores, 
Cuidosos se incubem do vaso das cores, 
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira 
Entesa-se a corda da embira ligeira, 
Adorna-se a maça com penas gentis: 
A custo, entre as vagas do povo da aldeia 
Caminha o Timbira, que a turba rodeia, 
Garboso nas plumas de vário matiz.

Em tanto as mulheres com leda trigança, 
Afeitas ao rito da bárbara usança, 
índio já querem cativo acabar: 
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, 
Brilhante enduape no corpo lhe cingem, 
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,


II

Em fundos vasos d’alvacenta argila 
Ferve o cauim; 
Enchem-se as copas, o prazer começa, 
Reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam, 
Sentado está, 
O prisioneiro, que outro sol no ocaso 
Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo, 
Mostra-lhe o fim 
Da vida escura, que será mais breve 
Do que o festim!

Contudo os olhos d’ignóbil pranto 
Secos estão; 
Mudos os lábios não descerram queixas 
Do coração.

Mas um martírio , que encobrir não pode, 
Em rugas faz 
A mentirosa placidez do rosto 
Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta 
No passo horrendo? 
Honra das tabas que nascer te viram, 
Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes 
Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, 
Lá murcha e pende: 
Somente ao tronco, que devassa os ares, 
O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse, 
Como viveu; 
E o caçador que o avistou prostrado 
Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes 
Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
Da fria morte.


III

Em larga roda de novéis guerreiros 
Ledo caminha o festival Timbira, 
A quem do sacrifício cabe as honras, 
Na fronte o canitar sacode em ondas, 
O enduape na cinta se embalança, 
Na destra mão sopesa a iverapeme, 
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo 
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, 
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, 
Como que por feitiço não sabido 
Encantadas ali as almas grandes 
Dos vencidos Tapuias, inda chorem 
Serem glória e brasão d’imigos feros.

"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro; 
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, 
"As nossas matas devassaste ousado, 
"Morrerás morte vil da mão de um forte."

Vem a terreiro o mísero contrário; 
Do colo à cinta a muçurana desce: 
"Dize-nos quem és, teus feitos canta, 
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa 
O índio, que ao redor derrama os olhos, 
Com triste voz que os ânimos comove.


IV

Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas, 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribo tupi.

Da tribo pujante, 
Que agora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do Norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas, 
De tribos imigas, 
E as duras fadigas 
Da guerra provei; 
Nas ondas mendaces 
Senti pelas faces 
Os silvos fugaces 
Dos ventos que amei.

Andei longes terras 
Lidei cruas guerras, 
Vaguei pelas serras 
Dos vis Aimoréis; 
Vi lutas de bravos, 
Vi fortes - escravos! 
De estranhos ignavos 
Calcados aos pés.

E os campos talados, 
E os arcos quebrados, 
E os piagas coitados 
Já sem maracás; 
E os meigos cantores, 
Servindo a senhores, 
Que vinham traidores, 
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo, 
Meu último amigo, 
Sem lar, sem abrigo 
Caiu junto a mi! 
Com plácido rosto, 
Sereno e composto, 
O acerbo desgosto 
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado 
Já cego e quebrado, 
De penas ralado, 
Firmava-se em mi: 
Nós ambos, mesquinhos, 
Por ínvios caminhos, 
Cobertos d’espinhos 
Chegamos aqui!

O velho no entanto 
Sofrendo já tanto 
De fome e quebranto, 
Só qu’ria morrer! 
Não mais me contenho, 
Nas matas me embrenho, 
Das frechas que tenho 
Me quero valer.

Então, forasteiro, 
Caí prisioneiro 
De um troço guerreiro 
Com que me encontrei: 
O cru dessossêgo 
Do pai fraco e cego, 
Enquanto não chego 
Qual seja, - dizei!

Eu era o seu guia 
Na noite sombria, 
A só alegria 
Que Deus lhe deixou: 
Em mim se apoiava, 
Em mim se firmava, 
Em mim descansava, 
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado 
De penas ralado, 
Já cego e quebrado, 
Que resta? - Morrer. 
Enquanto descreve 
O giro tão breve 
Da vida que teve, 
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo, 
Mas forte, mas bravo, 
Serei vosso escravo: 
Aqui virei ter. 
Guerreiros, não coro 
Do pranto que choro: 
Se a vida deploro, 
Também sei morrer.


V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; 
Os guerreiros murmuram: mal ouviram, 
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! 
Brada segunda vez com voz mais alta, 
Afrouxam-se as prisões, a embira cede, 
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

Timbira, diz o índio enternecido, 
Solto apenas dos nós que o seguravam: 
És um guerreiro ilustre, um grande chefe, 
Tu que assim do meu mal te comoveste, 
Nem sofres que, transposta a natureza, 
Com olhos onde a luz já não cintila, 
Chore a morte do filho o pai cansado, 
Que somente por seu na voz conhece. 
- És livre; parte. 
- E voltarei. 
- Debalde. 
- Sim, voltarei, morto meu pai. 
- Não voltes! 
É bem feliz, se existe, em que não veja, 
Que filho tem, qual chora: és livre; parte! 
- Acaso tu supões que me acobardo, 
Que receio morrer! 
- És livre; parte! 
- Ora não partirei; quero provar-te 
Que um filho dos Tupis vive com honra, 
E com honra maior, se acaso o vencem, 
Da morte o passo glorioso afronta.

- Mentiste, que um Tupi não chora nunca, 
E tu choraste!... parte; não queremos 
Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas 
O rebater do coração se ouvia 
Precípite. - Do rosto afogueado 
Gélidas bagas de suor corriam: 
Talvez que o assaltava um pensamento... 
Já não... que na enlutada fantasia, 
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, 
Do velho pai a moribunda imagem 
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato! 
Curvado o colo, taciturno e frio. 
Espectro d’homem, penetrou no bosque!
.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Ecos de Paris



Agora coloco a metade do primeiro capítulo de uma das obras do maior expoente realista português: Eça de Queiroz. O autor, que vivia em Paris, teve grande influência dos escritores franceses da época. Alguns de seus romances, como a trilogia "O crime do padre Amaro", "Os Maias" e "O primo Basílio" seguem a estrutura do romance realista francês. E outros, como "A cidade e as Serras" tem mais o estilo próprio do autor. No entanto, mesmo os primeiros têm características que fogem um pouco à cartilha através de personagens não planos entre outras. Ecos de Paris fala ao mesmo tempo da cidade e da vida social.
Essa introdução no primeiro capítulo conta a descaracterização cultural para imitar as revoluções sociais que aconteciam em Paris. Caminho esse que desagrada o autor e ao fim do qual ele prevê o total desinteresse pelas cópias em detrimento de Paris e Londres.



Ecos de Paris - Eça de Queiroz



I
PARIS E LONDRES


Eu não direi, como Lord Beaconsfield, que «no mundo só há de verdadeiramente interessante Paris e Londres, e todo o resto é paisagem». É realmente difícil considerar Roma como um ninho balouçando-se no ramo de um ulmeiro, ou ver apenas no movimento social da Alemanha um fresco regato que vai cantando por entre as relvas altas.
Não se pode negar, porém, que a multidão contemporânea tende para esta opinião do romanesco autor de Tancredo e da guerra do Afeganistão: nada vê no universo mais digno de ser estudado e gozado do que a sociedade, essa coisa cintilante e vaga que pode compreender desde as criações da arte até aos  menus  dos restaurantes, desde o espírito das gazetas até ao luxo das librés – e, muito racionalmente, corre a observar a sociedade, a penetrar-se dela, onde ela é mais original, mais complexa, mais rica, mais pitoresca, mais episódica, em Paris e em Londres: ao resto da Terra pede apenas cenários de Natureza, relíquias de arte, trajes e arquitecturas...
... Em Roma contempla os ornamentos do passado – o Coliseu e o papa; em Madrid interessam-no só os Velásquez e os touros; ninguém viaja na Suíça para estudar a constituição federal ou a sociedade de Genebra, mas para embasbacar diante dos Alpes.
E assim, para a turba humana, mais impressionável que critica, o mundo aparece como uma decoração armada em tomo de Paris e Londres, uma curiosidade cenográfica que se olha um momento, pedindo-se logo toda a atenção na tragicomédia social que palpita ao centro.
Isto  é uma superstição. Mas se realmente, o mundo fosse apenas uma paisagem acessória  – a devoção burguesa por Paris e Londres, residências privilegiadas da humanidade criadora, seria justificável: porque, na verdade, o interesse do universo está todo na vida, na sua luta, na sua paixão, no seu cerimonial, no seu ideal e no seu mal. O Sol, nascendo por trás das Pirâmides, sobre o fulvo deserto da Líbia, forma um prodigioso cenário; o vale do Caos, nos Pirenéus, é de uma grandeza exuberante – mas todos estes espectáculos hão-de ser sempre infinitamente menos interessantes que uma simples comédia de ciúmes, passada num quinto andar. Que há, com efeito, de comum entre mim e o Monte Branco? Enquanto que as alegrias amorosas do meu vizinho, ou os prantos do seu luto, são como a consciência visível das minhas próprias sensações.
O grande Dickens, diante dos Alpes ou dos palácios de Veneza, punha-se a pensar com saudades nas tristes ruas de Londres, num rumor de fim de dia e no prazer de surpreender as expressões de ansiedade, triunfo ou dor, nas faces dos que passam, alumiados pelo gás vivo das lojas. E que o melhor espectáculo para o homem  – será sempre o próprio homem.
Se sobre a Terra só houvesse fachadas de catedrais ou vulcões flamejantes, a Terra parecer-nos-ia tão insípida como a Lua, ou (ainda que isto seja talvez exagerado) como a própria Lisboa. Por mais cantantes que sejam as  águas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o vale – a paisagem é intolerável, se lhe falta a nota humana, fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença de um peito, de um coração vivo.
Mas a verdade  é que fora de Paris e Londres há também humanidade. Sampetersburgo não forma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não é uma floresta com uma população de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa mesmo se encontra, de vez em quando, um homem. Que importa! O mundo persiste em considerar essa humanidade de Berlim, de Lisboa ou Sampetersburgo como um mero acessório da decoração, como aquele arabezinho diminuto que os fotógrafos colocam sempre à base das ruínas de Palmira, ou como esses pastores vestidos de um farrapo de púrpura que nos quadros do século XVII ornam as paisagens ideais.
O que essa humanidade de província faz, diz, sofre ou goza – é-lhe indiferente. Não é a ela que vai ver, se visita os lugares que ela habita: o que lá lhe move a curiosidade apressada  é algum monumento, algum panorama  –- a paisagem, como diz Lord Beaconsfield. Para o estrangeiro, Portugal é Sintra, a Alemanha é o Reno: até mesmo na ideia de Lord Byron, e de outros depois dele, o que estraga a beleza de Lisboa  é a
presença do Lisboeta  – como a mim o que me estraga a Alemanha  é a presença do Prussiano. Positivamente a multidão só reconhece uma sociedade  – a de Paris e de Londres.
Mas, dentro em pouco, nem ruínas, nem monumentos haverá dignos de viagem; cada cidade, cada nação, se está esforçando por aniquilar a sua originalidade tradicional, nas maneiras e nos edifícios, desde os regulamentos de polícia até à vitrina dos joalheiros  – a dar-se a linha parisiense. No Cairo, cidade dos califas, há cópias do Mabile, e os ulemás esquecem as metáforas gentis dos poetas persas, para repetir os
ditos do Figaro; o primeiro som que ouvi, ao penetrar as muralhas de Jerusalém foi o cancã da Bela Helena, e saiu da habitação de um rabi, de um doutor da lei santa; nas margens do Jordão, sobre a areia dourada, que os pés de Jesus pisaram, achei dois velhos colarinhos de papel,  modelo Smith: bem sei que não pertenciam nem ao Salvador, nem ao Precursor, mas lá estavam, e despoetizavam suficientemente aquela
riba sagrada.
O mundo vai-se tornando uma contrafacção universal de Bulevar e da Regent Street. E o modelo das duas cidades  é tão invasor que, quanto mais uma raça se desoriginaliza, e se perde sob a forma francesa ou britânica, mais se considera a si mesma civilizada e merecedora dos aplausos do Times. O Japonês julga-se, na escala dos seres, muito superior ao Chinês, porque em Yedo já o indígena se penteia como o tenor Capoul e lê Edmond About no original; enquanto que a China, obsoleta nas vetustas ruas de Pequim, ainda vai no rabicho e em Confúcio. E, ainda assim, nas margens do Amor já há fábricas de tecidos de algodão, como em Manchester.
Positivamente, inclino também para a ideia de Lord Beaconsfield: a originalidade viva do universo está em Paris e em Londres: tudo mais é má imitação de província. Por isso que a curiosidade pública  é impelida para lá – dando ao resto do mundo apenas aquele olhar rápido que se tem para o fundo dos retratos, onde verdejam vagos de paisagem ou se perfilam linhas de um pórtico.
É por isso que ninguém que tenha o orgulho de se considerar ser racional prescinde de se informar diariamente de tudo  que se passa em Paris ou em Londres, desde as revoluções até às toilettes, desde os poemas até aos escândalos.
O desejo mais natural do homem é saber o que vai no seu bairro e em Paris.
Que importa o que sucede na  Ásia Central, onde os Russos se batem, ou  na Austrália, onde há crise ministerial? O que se quer saber é o que fez ontem Gambetta, ou o que dirá amanhã o professor Tyndall.
E com razão: a Ásia Central e a Austrália não ensinam nada, e Paris e Londres ensinam tudo.
Tendo assim sacrificado suficientemente à regra, que quer que todo o escritor da raça latina nunca enuncie a sua ideia ou conte o seu facto sem se fazer preceder de frases genéricas armadas em pórtico – creio que devo começar esta crónica falando hoje de Paris, capital dos povos e pátria genuína de Mr. Prudhomme...

sábado, 3 de novembro de 2012

Alma Minha Gentil, que te Partiste


Apesar de controverso, muitos julgam Camões o maior poeta da língua portuguesa. Embora sua imortalidade seja devida sobretudo ao seu poema épico, os Lusíadas, recebe um lugar importante em sua obra a poesia lírica. Enquanto na primeira há o otimismo com relação ao futuro e o orgulho das glórias do passado, na segunda há a melancolia e muitas vezes a saudade, exclusividade nossa. O sentimento intraduzível, o estar sozinho entre as gentes, uma das bases do tripé da alma portuguesa, aliada à coragem e à amizade.



Alma Minha Gentil, que te Partiste - Luís Vaz de Camões


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.