sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Meus oito anos

Casimiro de Abreu é o poeta do amor ingênuo. Apesar de amigo de Machado de Assis e patrono de uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras, o poeta da segunda fase do romantismo nunca escreveu sobre os amores rebuscados, falando sempre das memórias da infância e das saudades de então. Além disso, nas mentes do estudantes brasileiros, Casimiro de Abreu é de fato o poeta de 'nossos oito anos'. Quem nunca leu esse seu poema na escola? e nunca soube apreciá-lo somente mais tarde? O que fala o poema não retrata no seu sentido literal os oito anos da maioria, mas nos faz lembrar nossos oito anos, e nos   sugere paralelos, evocando nossas próprias saudades de escola.


Meus oito anos - Casimiro de Abreu


Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh ! dias de minha infância!
Oh ! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberta ao peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar!

Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Como se rouba um coração

Luis Fernando Veríssimo, escritor e filho do também escritor Érico Veríssimo é um dos mais populares cronistas do Brasil. Ele é capaz de aliar frases de suprema sátira como "Viva cada dia como se fosse o último de sua vida. Um dia você acerta", com belas crônicas sentimentais e cheias de poesia. A seguir, uma de suas mais famosas nesse molde.

Como se rouba um coração - Luis Fernando Veríssimo



Para se roubar um coração, é preciso que seja com muita habilidade, tem que ser vagarosamente, disfarçadamente, não se chega com ímpeto,
não se alcança o coração de alguém com pressa.
Tem que se aproximar com meias palavras, suavemente, apoderar-se dele aos poucos, com cuidado.
Não se pode deixar que percebam que ele será roubado, na verdade, teremos que furtá-lo, docemente.
Conquistar um coração de verdade dá trabalho,
requer paciência, é como se fosse tecer uma colcha de retalhos, aplicar uma renda em um vestido, tratar de um jardim, cuidar de uma criança.
É necessário que seja com destreza, com vontade, com encanto, carinho e sinceridade.
Para se conquistar um coração definitivamente tem que ter garra e esperteza, mas não falo dessa esperteza que todos conhecem, falo da esperteza de sentimentos, daquela que existe guardada na alma em todos os momentos.
Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes,
que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago.
...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele, vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco.
Uma metade de alguém que será guiada por nós e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração.
Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria.
Baterá descompassado muitas vezes e sabe por que?
Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós.
Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava.
... e é assim que se rouba um coração, fácil não?
Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade,
a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então!
E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples...
é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você.

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Palácio da Ventura

Antero de Quental é um dos maiores nomes do Romantismo português, e em especial, da poesia romântica. Assim como em sua vida conviviam seu militantismo socialista fanático e seu distúrbio bipolar, também seus poemas tem duas fases, a primeira, socialista militante, e a segunda da metafísica desesperançada e perdida. Essa segunda fase é considerada pelos estudiosos a de maior valor artístico. Mas foi a riqueza e importância de sua família que lhe permitiram não só viver de rendimentos para fazer poesia, mas também ter contato com todos os grandes nomes da literatura portuguesa daquele período.



O Palácio da Ventura - Antero de Quental


Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão — e nada mais!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Memórias Póstumas de Brás Cubas


Joaquim Maria Machado de Assis é o escritor que prova, a despeito de todas as enrolações históricas sobre o Brasil imperial que o preconceito e o racismo nunca fizeram parte da cultura nacional. Filho ilegítimo e mulato, não foi isso impedimento para que, não só ele fosse um autor prestigiado e considerado, mas que ascendesse socialmente, casando-se inclusive com uma moça da alta sociedade. Ao mesmo tempo, foi ele o autor, tanto nos contos como nos romances que introduziu o realismo no Brasil, deixando para trás a era romântica de José de Alencar. Brás Cubas é, sob um certo aspecto, o livro mais importante da literatura brasileira. Particularmente, o considero o mais bem escrito. Machado de Assis teve ainda a honra de ser apreciado por Eça de Queiroz, seu "rival" de certa forma por ter um outro estilo de realismo. Eis o trecho inicial.



Memórias Póstumas De Brás Cubas - Machado de Assis



Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança essas memórias póstumas

Ao Leitor

Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê-lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez, Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Stern de um Lamb ou
de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao
entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas

CAPÍTULO 1 - Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim
mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -- "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, -- minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, -- a filha, um lírio-do-vale, -- e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta
e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
- Morto! morto! dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, -- a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Via Láctea

Olavo Bilac é, pode-se dizer, o poeta parnasiano por excelência. Gerações decoraram e ainda decoram seus poemas na escola. Como todo parnasianismo, sua obra é composta de sonetos na forma clássica, intensamente trabalhados até atingirem a forma perfeita. "É como o vaso que o artesão lima até à perfeição".  O soneto a seguir tem adicionalmente a beleza dos 'enjambements' em muitos dos seus versos. Quando se lê, é importante para a sonoridade que a pausa no fim do verso seja quase imperceptível e a verdadeira pausa seja no fim da frase, onde quer que ele esteja. Isso faz da poesia rica, pela estrutura complexa que lhe proporciona.



Via Láctea - Olavo Bilac



"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas".

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte IV


O estilo de Julio Dinis é uma mistura entre Romantismo e Realismo. Ao mesmo tempo, por ter mãe de ascendência irlandesa, ele dominava o inglês, o que lhe trouxe a possibilidade de leitura de clássicos ingleses, como Jane Austen e Dickens, de onde ele aprendeu o realismo psicológico, o qual ele mistura ao romantismo português. Sob essa ótica realista, sua obra tem um realismo muito mais inglês, com personagens complexas e que mudam de acordo com a narrativa do que com o realismo francês. Além disso, pelo encanto que tinha pelo próprio país, está misturado não só o romantismo dos sentimentos, onde, afinal, todos acabam felizes, mas um romantismo um pouco ufanista, que exalta a Pátria mostrando seus atrativos.

O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte IV




— Ele me ajudará também — dizia consigo mesmo a boa mulher, como se quisesse colorir com um pensamento egoísta o impulso que lhe viera directamente do coração.
Nós temos destas coisas.
Mas o certo é que, apesar da melhor vontade, em pouco podia Agostinho auxiliar a madrinha.
Auxiliar de que maneira? Emprego não o pôde ele obter. Naquela cidade, como em muitas outras terras do reino, não se vêem com bons olhos os infelizes que voltam do Brasil pobres. Lá parece uma prova de pouco espírito e da nenhuma aptidão a essa boa gente um semelhante sucesso. O Brasil é, para ela, como o campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso, ou morre-se combatendo. Fugir é de covardes.
E ora aí têm os leitores a razão por que dois meses depois da chegada de Agostinho, era ainda Maquelina quem só provia às despesas da casa, as quais, como era de supor, tinham aumentado; desenvolvendo a pobre velha esforços sublimes para um duplo resultado: obter meios de subsistência e ocultar ao sobrinho os imensos sacrifícios, a que para isso se sujeitava.
Mas Agostinho suspeitava-os e afligia-se. Um dia falou à madrinha nas vozes que corriam ainda sobre as
riquezas do defunto. Maquelina sorriu tristemente, respondendo:
— Pois procura-as.
Agostinho deitou-se à obra com calma, revolveu de novo o quintal a mais de um metro de profundidade, despregou as tábuas do soalho, sondou as paredes, trepou aos mais altos escaninhos da casa... tudo
foi inútil.
Disse adeus ainda a essa ilusão. O que lhe valeu foi estar já costumado a despedir-se delas. A primeira vez custa mais.
No entretanto os esforços e vigílias de Maquelina arruinaram-lhe a saúde. Lutou braço a braço com a doença como lutara com a fome. Lutas heróicas que passam ignoradas, enquanto tantas outras, muito
menos merecedoras das honras da epopeia, são extremamente celebradas em oitava rima. Afinal caiu vencida no leito, e então é que o futuro se lhe mostrou carregado. A pobre mulher não se iludia nem sobre a gravidade da sua moléstia, nem sobre as consequências da sua morte.
Que seria de Agostinho? Agostinho, a quem ela amava já como se amam os entes fracos que vieram procurar a nossa protecção, com esse amor bem mais intenso mesmo do que o votado aos seres que
nos protegem.
Porque o primeiro lisonjeia o nosso orgulho, e o segundo, esse, revela a nossa inferioridade. Coisas humanas.
O futuro de Agostinho era a ideia negra de Maquelina; como ela ficaria contente por morrer se não fora isso! Mas agora custava-lhe; esta lembrança aumentava-lhe a doença. Que diria ela à irmã, quando no Céu lhe pedisse novas do filho? Que o deixara na miséria? E era isso de boa madrinha?
E estes pensamentos e apreensões definhavam-na a olhos vistos. Agostinho aterrou-se, e reconheceu então tudo quanto tinha havido de heróica abnegação no procedimento da tia.
O seu coração de homem teve um movimento pelo qual procurou libertar-se da espécie de colapso em que infortúnios continuados o haviam lançado. Agostinho curvara a cabeça sob a corrente de desgraças que sem interrupção haviam sucedido na sua vida; agora tentava elevá-la em um último esforço.
— É preciso tentar fortuna — dizia ele consigo — amanhã de manhã sairei a pedir trabalho, a tudo me quero sujeitar, a tudo. E adormeceu com este pensamento, sonhando daí a pouco em uma mina de ouro, onde ao fim de muita fadiga, só conseguiu extrair enormes pedras de carvão.
O leitor pode imaginar toda a agradável voluptuosidade de semente sonho. Por a manhã ergueu-se disposto a realizar o projecto da véspera; mas foi encontrar a tia em um estado tão assustador, que não teve
imo para abandoná-la.
— Não tem de ser! — disse consigo Agostinho, a quem a desgraça ase tornara fatalista.
Maquelina mostrava-se de facto em risco iminente. O facultativo de partido veio vê-la; pois Maquelina havia enfim conseguido entrar no quadro dos pobres. Tomou-lhe um pulso, depois o outro; deu-lhe três pancadas do lado direito do tórax, igual número do esquerdo; pousou-lhe o ouvido sobre as descarnadas costelas, e, como se escutasse lá dentro os passos da morte, ergueu-se e fez um gesto de descontentamento visível.
Receitou um chá de alteia e saiu.
Agostinho esperava-o à porta.
— Então ?
O médico puxou pelo relógio, ao qual principiou a dar corda, dizendo com a indiferença profissional:
— Como àquela máquina se não dá corda como a esta, pára dentro em poucas horas.
Agostinho sentiu subirem-lhe as lágrimas aos olhos. O médico voltou-se ainda de novo para dizer:
— Eu escuso de cá voltar, agora o padre.
Estas palavras, ditas em tom mais alto e da maneira mais natural possível, como as sabem dizer alguns adeptos da ciência hipocrática, que se jactam de fortes, chegaram aos ouvidos de Maquelina, que juntou as mãos, e, erguendo os olhos ao Céu, disse com voz débil:
— Aqui está a serva do Senhor, cumpra-se em mim a sua santíssima vontade.
Quando Agostinho entrou no quarto, encontrou-a resignada. Nessa mesma tarde confessou-se e sacramentou-se aquela pobre de Cristo.
Na cidade dizia-se:
— Coitada! o irmão matou-a. Morre de fome e fadiga e com dinheiro em casa.
Era forte cisma a do povo.
Mas há dessas teimas.
Ao pé da noite pediu Maquelina um chá para mitigar a sede
Naquele dia não se acendera ainda o lume em casa. Agostinho esquecera-se de comer, e se se lembrasse não sei bem o que teria sucedido. Melhor foi que se não lembrasse.
Agostinho correu à cozinha, reuniu a custo alguns cavacos já meio queimados para acender o lume, e voltou à sala.
Maquelina dava-lhe instruções da cama.
— Ainda achaste lenha ?
— Achei, sim, madrinha.
— Bem; ora agora... Essa lamparina está acesa ainda?
— Está, madrinha, está, pois não vê.
— Não, filho, já a não vejo.
Havia neste já uma significação que comoveu Agostinho.
Ela continuava:
— Encontraste carqueja ?...
— Não, madrinha... mas...
— Valha-me Deus — disse ela, lutando já com dificuldades para se fazer ouvir. —Olha, sabes, aí... na gaveta do toucador... está uma papelada de que... às vezes me sirvo para economizar. Acende alguma
na... lamparina e... Ai! — terminou ela com um suspiro, que o longo esforço que tinha feito para falar lhe tornara necessário; e depois em voz mais baixa acrescentou:
— Louvado seja o Senhor, a que estado eu cheguei!
Agostinho abriu a gaveta.
— Aí — continuou Maquelina com voz sumida e trémula.
— Achaste? bem... ora agora...
Agostinho inflamou à chama escassa da lamparina um dos papéis que tirara do velho toucador da tia.
— Isso — disse esta satisfeita por se ver compreendida.
Ãs sombras indistintas que reinavam no aposento sucedeu a claridade da lavareda, mas foi de pouca duração. Ainda não teria ardido metade do papel, já Agostinho, soltando um grito inexprimível, o atirava ao chão, abafava-o com os pés, precipitando ao mesmo tempo pela vivacidade do movimento a lamparina, que se fez em pedaços.
A escuridade tornou-se completa.
— Que foi, santo nome de Jesus! que foi, Agostinho? — dizia assustada Maquelina, erguendo-se a meio corpo.
— Que papéis eram estes, minha madrinha?
— Eu sei lá, filho; mas que foi ? valha-me o Senhor,
— Uma luz! uma luz! — bradou Agostinho fora de si; e saiu repentinamente da casa, atravessou a rua, enfiou pela primeira porta que encontrou aberta, galgou um lanço de escadas, penetrou em um quarto
onde trabalhavam pacificamente algumas mulheres, apoderou-se da luz que viu no meio da mesa, em volta da qual elas se formavam em círculo, e sem dar uma única palavra, saiu arrebatado, deixando em completa estupefacção as circunstantes, que só passados minutos voltaram a si, para correrem atrás do mancebo, que parecia possesso.
Agostinho entrou de novo no quarto da tia moribunda, aproximou-se do lugar onde deixara os restos do papel meio consumido, apanhou-o, examinou-o com escrupulosa atenção, depois correu à gaveta do toucador, sujeitou a igual exame os outros papéis semelhantes que ai estavam a monte.
— Por amor de Deus, madrinha... mas... de onde vieram estes papéis ? — exclamou ele, ao passo que um por um os passava em revista.
Maquelina, apoiada no braço convulso e com os olhos espantados, olhava para o sobrinho estupefacta.
— Eram do mano, o Senhor o tenha em glória; guardava-os naquela arca; ele sempre me disse que de nada valiam, e agora que eu me via precisada ia-os queimando, para...
— Mas, valha-nos a Virgem! era uma riqueza inteira que queimava assim!
— Que dizes tu, filho?
Os combustíveis da tia Maquelina eram nem mais nem menos que boas e excelentes notas de banco, às quais o velho Cipriano reduzira os seus haveres, porque o amedrontava o tinir do dinheiro metálico, como chamariz de ladrões: enquanto que por outro lado nunca se pudera resignar a separar-se do seu querido capital, em cuja contemplação saboreava aquela doce voluptuosidade, só dos avarentos conhecida.
Quando se procedeu a investigações em casa de Maquelina para descobrir o tesouro oculto, esqueceram-se, como quase sempre acontece, de examinar os lugares, por onde deviam ter principiado; enquanto profundavam a terra e escavavam as paredes, ninguém se lembrou de abrir a pequena gaveta, que nem chave tinha sequer, e onde Maquelina alojara toda a riqueza. Mas quem o podia supor!
O instinto do povo não o enganara desta vez. Cipriano era de facto rico. Vivera uma vida de privações, praticou um negócio de alta usura debaixo das maiores cautelas e mistério impenetrável; aí está explicada a sua riqueza. É receita infalível para chegar ao mesmo resultado; as pessoas, a quem não nausearem os ingredientes, adoptem-na, porque não falha. Desconfiando de todos, da própria irmã desconfiava, e dava-lhe por isso a entender que de nenhuma importância eram os papéis que ela às vezes por acaso chegara a descobrir.
Maquelina era ignorante, e nem imaginava sequer que se pudesse ter uma riqueza em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a ideia de riqueza andava associada à de muito dinheiro em ouro e prata:
gavetas, cómodas, caixas e burras cheias dele ; e por isso ia queimando agora lentamente aquele tesouro que o irmão acumulara; e isto com o fim de poupar carqueja!
Cleópatra, brindando os amantes com soluções de pérolas preciosas, não conseguiu ser mais magnifica. Era um passatempo de milionário o de Maquelina.
Se Deus lhe prolongasse a vida, até onde iria aquela monstruosa combustão? Que soma enorme seria aniquilada! E ainda assim quanto não consumiria!
Nunca se pôde calcular.
Há o quer que é de sublime neste quadro. Uma mulher velha, caquética, esfomeada, agonizante, tendo ao alcance do braço uma riqueza, como ela nem sequer concebera nos seus mais ambiciosos sonhos, e queimando-a!
A notícia inesperada, que recebia agora, imprimiu àquela existência o derradeiro abalo. A alma, já quase desapegada do corpo, abandonou-o de todo e partiu.
À meia-noite morreu a santa criatura, contente, porque deixara rico o sobrinho e afilhado, único parente que possuía na terra.
Ainda assim, quando se divulgou a notícia, o que, graças à comunicabilidade das mulheres a quem gostinho usurpara a luz, e que foram as primeiras a sabê-la, se não fez esperar muito, houve quem se penteasse como herdeiro.
Faria rir se expusesse aqui os fundamentos das pretensões desta gente, e eu não quero fazer rir o leitor a quem peço antes uma lágrima para a memória de Maquelina.
Não seguiremos agora a história de Agostinho, que se modela por a de todos os homens ricos.
Apenas direi que por suas especulações comerciais conseguiu multiplicar o capital tão inesperadamente herdado, e hoje é milionário.
Vejam o instinto do povo!

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte III

Júlio Dinis é mais conhecido por seus 4 romances. As Pupilas do Senhor Reitor é o primeiro a ser publicado e também o mais conhecido. Foi adaptado para o teatro e representado ainda em vida do autor. Os fidalgos da Casa Mourisca foi último escrito e não chegou nem a ser completamente revisto por Júlio Dinis. Esses dois e A Morgadinha dos Canaviais mostram a vida no campo e nas aldeia portuguesas. A paixão pelo campo foi inspirada ao autor quando este esteve passando um tempo na casa de alguns parentes para tentar tratar a tuberculose.
Já Uma Família Inglesa trata da vida da pequena burguesia nascente na cidade do Porto, transformando-se em algo com traços autobiográficos, pois foi o meio onde o autor nasceu. Em todos eles, Júlio Dinis é escrupuloso em descrever com detalhes e realismo a paisagem, os costumes, o estilo de vida e os caracteres das classes portuguesas. Dessa forma, há descrições minuciosas e por vezes extensas que procuram ser leves pois o autor considera-as como parte fundamental de sua obra como um todo.


O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte III



Não sei de nada mais delicado, do que é este ser misterioso e respeitável por excelência, a que se dá o nome de público. É singular como todos tomam a peito manter-lhe a veneração devida e se doem às mais levas infracções que esta sofre. Grita-se contra um facto escandaloso, pateia-se no teatro uma produção imoral, fulmina-se um procedimento menos honesto, em respeito ao público, já se sabe. Não me ofendi eu, nem vós, nem eles; interrogai-os um por um, nenhum se dará por ofendido, mas todos vos responderão com a fórmula: «e o público!» Porém valha-nos Deus, o público é exactamente constituído por mim, por ti, por vós todos que assim respondeis; como é, pois, que de elementos tão pouco susceptíveis resulta um produto
tão melindroso?
Cada qual no gabinete lê uma obra de duvidosa moralidade, ri-se, diverte-se com a leitura, e ninguém quererá admitir que ele lhe possa ter causado o menor prejuízo. Aí temos portanto uma obra inofensiva ; pois não é tal; antes a vemos proclamar um verdadeiro veneno servido pela imprensa ao público, um miasma que se ergue dos prelos, um fermento de dissolução de costumes, e outros nomes igualmente feios. A não vermos nestes factos a confirmação daquelas ideias, que nas primeiras páginas expendi, não sei que outra solução razoável daremos ao problema.
É certo, porém, que o público, citado pelo regedor, achava-se exactamente nestas circunstancias. Todos os presentes abanavam a cabeça em sinal de aprovação; nenhum pela sua parte se mostrava escandalizado com o extemporâneo aparecimento de Maquelina, mas o complexo pelos modos sofria muito com isso.
A referida observação da autoridade humedeceram-se os olhos de Maquelina.
— E que lhe hei-de eu fazer, Sr. Bento Maria ? Quem é pobre...
Houve sussurro na assembleia; o adjectivo parecia beliscar o auditório.
— Pobre! É sempre o mesmo estribilho — disseram algumas vozes.
O regedor serenou o tumulto, dirigindo-se a Maquelina.
— Bem, deixemos agora isso. O que a traz por aqui?
Maquelina explicou-se. A indignação dos circunstantes rebentou.
— Sempre é desaforo!
— Também é preciso ter descaramento.
— É digna do irmão, já vejo.
— A alma do sovina meteu-se-lhe no corpo.
— Quem esconjura esta mulher ?
O regedor principiou a franzir a testa.
— Ora vejam a pobrezinha.
— Nosso Senhor a favoreça, irmã.
— Ora já viram!
O regedor levantou-se.
— Quem enterra o mano ?
— Forte perda, se fica de fora!
— Aquele nem os bichos o querem.
— Leva rumor! Ai, que eu...—rugiu por entre dentes o regedor, e todos imediatamente... silent, arrectisque auribus adstant. Pudera; o ai, que eu... do Sr. Bento Maria não ficou a dever nada ao célebre quos ego... de Neptuno. O regedor sabia, como Virgílio, o valor de eloquentes reticências. Em auxílio da ordem veio de mais a observação de um circunstante, dotado de sentimentos mais humanitários.
— A mulher tem razão, coitadinha, se o miserável deixou tudo escondido.
As massas são fáceis de impressionar. O alvitre modificou as opiniões.
-— É assim, é assim.
— Pobre criatura!
— Que vale tê-lo, se se não sabe aonde ?
Por este tê-lo entendia-se dinheiro; é de facto o substantivo que mais elipses suporta; tão presente o trazem na ideia, que não necessita estar nas orações antecedentes, para ser subentendido.
— Sim, sim, ela tem razão, é pobre, é...
O regedor enfarinhado nas praxes constitucionais, não era homem que fosse de encontro à opinião dos fregueses e, portanto, depois de concentrar por algum tempo o espírito, operação que nem por isso lhe aumentou demasiado a energia, passou o seguinte atestado, modelo de diplomacia e de exactidão ortográfica:
«Eu Bento Maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im
como Maquilina Rosa Martins, solteira, de esta Cidade, não tem, aberes para lazer, as despesas do intero do seu irmon cepreano cujo consta ter dinheiro. Mas o quecerto é que por morte se não incontrou i se é
berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesto e mo diserem pessoas diganas para mim de todo o Creto, pacei esta que juro.
«Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de...
«Bento maria do portal.»
Bento Maria era decididamente o funcionário público de mais expediente e de mais arrojadas medidas que existia então na cidade, Depois de mais algumas dificuldades e tropeços sempre se conseguiu enterrar, à ordem da junta de paróquia, o velho Cipriano, o qual de outra maneira bem teria de ficar fora do seio da terra, por não haver deixado dinheiro.
Todos estes acontecimentos, longe de desvanecerem os boatos das ocultas e sonhadas riquezas de Cipriano, os aumentaram, e deram lugar a duas versões diferentes.
Uns, mas eram a minoria, lançavam em rosto à pobre Maquelina o mesmo que haviam imputado ao irmão; outros, porém, viam nela uma vítima, ainda além da campa, da sórdida avareza do incorrigível octogenário.
Só Maquelina é que rejeitava urna e outra crença. Sabia-se inocente e não se acreditava vítima. E lutando com a idade avançada, tirava forças da fraqueza e ia provendo conforme podia ao seu sustento
quotidiano.
Não pôde, porém, resistir inteiramente às insinuações dos que falavam em tesouros enterrados, e as portas da casa abriram-se de par em par a uma junta de inquérito, presidida pelo regedor, a qual, pelos mais escusos recantos, e a grande profundidade no quintal procurou o decantado tesouro, sem no fim colher frutos de tantos esforços.
E as coisas conservaram-se por muito tempo neste pouco agradável statu quo. Um dia, porém, pioraram longe de se desanuviarem, as circunstâncias de Maquelina. Um sobrinho seu, filho de uma irmã que morrera jovem, voltou do Brasil e, contra o que era de esperar, vinha como partira, isto é,
com a riqueza de Job na desgraça.
A história deste rapaz é uma história longa e curiosa, que desta vez não contarei ao leitor.
Uma manhã, pois, quando Maquelina estava meditando em não sei que medida de economia doméstica, importantíssima para a melhor direcção de suas mesquinhas finanças, entrou-lhe pela porta dentro um rapaz magro, espigado, de fisionomia denunciadora de sofrimentos, o qual lhe estendia as mãos, dizendo: — Bons dias, madrinha, então não me conhece?
— Santa Maria! Querem ver que... És tu, Agostinho?
— Eu, eu mesmo.
A boa Maquelina saltou-lhe ao pescoço e devorou-o de beijos. O rapaz viu-se em talas e com ameaças de asfixia. Depois veio um pensamento à tia Maquelina, pensamento um pouco interesseiro é verdade, mas desculpem-na, e não ma principiem já por isso a olhar com maus olhos; todos como ela o teriam, e, o que
pior é, a poucos viria apenas em segundo lugar e só muito após dos espontâneos impulsos de uma afeição desinteressada: «o rapaz vinha Brasil... e o Brasil sempre é o Brasil» foi a ideia que lhe voou pelo
— Então — disse ela, movida por essa ideia— vens... rico!
Agostinho voltou os bolsos do avesso por única resposta. Maquelina juntou as mãos e não deu palavra.
E para quê? Queriam ainda de parte a parte mímica mais expressiva!
.— Vim para não morrer de fome.
Aqui benzeu-se a boa da tia.
— Embarquei como moço de navio por não ter dinheiro para a passagem.
Neste ponto persignou-se.
— E agora venho pedir-lhe — continuou o sobrinho — que me receba em casa até... até... arranjar modo de vida.
Maquelina, quando, junto da pia baptismal do pequeno Agostínho, se declarara madrinha, à face da Igreja, do filho querido de sua irmã, tinha já concebido uma alta ideia da missão que desde aquele momento ia adoptar por sua e para com o recém-nascido, que sustentava nos braços; nem foram para ela simples palavras de formalidade as que em tom de prédica ouvira ao pároco, sobre os seus deveres futuros. «Na falta dos pais, dissera ele, aos padrinhos compete a vigilância e a educação das crianças, que sob a sua protecção entrarem no grémio da Igreja católica». Ora os pais de Agostinho lá se tinham já partido para melhor morada, e Maquelina, que, eminentemente escrupulosa em negócios de consciência, se julgava por ela obrigada a cumprir até ãs últimas extremidades os seus deveres de cristã, tinha de mais a mais um coração farto para afeições e sentimento.
Fechou, pois, os olhos aos sacrifícios futuros e aceitou a companhia do afilhado.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte II

Júlio Dinis é o pseudônimo mais conhecido do escritor Joaquim Guilherme Gomes Coelho. O autor (Porto 1839-1871) foi formado em Medicina, mas não se interessava pela profissão, ao contrário, sua verdadeira paixão era a literatura. Apesar do pouco tempo de vida, deixou uma obra grande entre críticas literárias, poemas, contos e 4 romances. No início de sua vida começou a escrever para jornais, de onde foram pegos os contos para as coletâneas Serões da Província e Inéditos e Esparsos, publicada postumamente. Em 1869 Julio Dinis parte para a Madeira para tratar de tuberculose, diagnosticada alguns anos antes, mas não permanece inativo, escrevendo sempre. No mesmo ano de sua morte, uma sua peça de teatro é representada no Rio de Janeiro, consagrando assim a internacionalização, por assim dizer do autor. Serões da Província, onde se encontra o conto foi publicado em 1869.



O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte II



Maquelina à palavra requerimento empalideceu. Fazer um requerimento é um negócio importante, um passo difícil na vida destes seres inofensivos e alheios a processos judiciais, a cuja confraria pertencia a boa mulher.
Mas que remédio! Saiu dali e procurou o presidente da câmara.
Era este um gordo merceeiro, cuja cabeça se podia dizer um vulcão de medidas tendentes todas ao melhoramento público e progresso social. Durante a sua feliz administração dos negócios municipais, contava actos realmente surpreendentes de tino governativo.
Seja-me lícito citar aqui alguns factos da vida pública deste não aproveitado estadista. Os moradores de uma rua estreita, onde os beirais dos telhados fronteiros quase se encontravam a ponto de interceptarem a passagem da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos, de cultivarem frondosos arbustos nas sacadas das habitações, com grande incómodo e prejuízo dos queixosos, para os quais anoitecia mais depressa, graças à sombra impenetrável que projectavam os folhudos ramos na já de si pouco esclarecida rua. O sábio edil legislou à vista disso:
«Ficam proibidas as árvores em todos os lugares onde a vegetação seja impossível.»
Eu penso que se Montesquieu tivesse notícia desta lei havia de apreciá-la, pela admirável concordância com as da imutável natureza. De outra vez os contribuintes pacíficos que habitavam próximo aos arrabaldes, lamentaram-se, em termos legais, pelas incómodas harmonias, com que todas as manhãs os despertavam os carreteiros com a infernal chiadeira de impertinentes carros. Pensava aquela boa gente que a sinfonia de ouverture da criação não perdia nada se lhe suprimissem da orquestra o pouco harmonioso instrumento. Atendendo à justa reclamação dos povos, o judicioso funcionário promulgou que: «Todos os carros que chiassem contra as posturas municipais, pagassem dois mil-réis de multa, sendo metade para o denunciante, dado o caso de serem ouvidos».
Já se vê que chiar contra as posturas era coisa séria; a câmara tinha susceptibilidades e ofendida chegava a multar... os carros. Quando esta medida se discutiu em plena vereação, um dos camaristas levantou-se e deu mostras de querer falar.
— Peço a palavra, sr. presidente.
— Tem a palavra o ilustre colega.
— Eu desejava que se fosse mais severo contra os perturbadores do sono público e se desse maior alcance a esta medida policial, multando todo o carro que chiar, quer seja ouvido, quer não.
O conselho, atendendo porém a que não convinha ser demasiado ríspido com os povos e que os carros não sendo ouvidos, pouco podiam incomodar, adoptou a cláusula do autor do projecto, rejeitando a emenda.
E foi muito bem considerado.
Outra ocasião ainda, ouvindo o nosso homem discutirem dois bacharéis, classe de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniência das Rodas, e vendo-os acordes na necessidade de importantes e radicais reformas nestes estabelecimentos, veio para casa pensativo, e o cérebro, fecundado por aquela ideia, lidou toda a noite em gestação mental, tendo no fim o seu bom sucesso, porquanto pela manhã o magistrado municipal apresentou à aprovação dos colegas a seguinte medida regulamentar:
«Toda a mãe que expuser seu filho sem um bilhete do município, fica tacitamente encarregada da educação deste.»
A entender-se gramaticalmente a coisa, rude tarefa cabia à pobre da mãe, superior ao esforço humano.
Esta medida de um incomensurável alcance económico, por um triz ia passando.
Mas emperrou no advérbio tacitamente, que de facto era a maior palavra do período e que o legislador empregara para o arredondar; ele tinha lá suas ideias a respeito de estilo, não obstante viver antes das últimas reformas dos liceus, na qual pelos modos este assunto foi regulado de uma vez para sempre. Se a lacónica definição de Buffon é verdadeira, se o estilo é o homem, ninguém de facto como o nosso
vereador podia fazer períodos mais rotundos. Mas o corpo camarário viu na frase não sei que sentido maquiavélico, e mostrou escrúpulos.
Em vão o digno chefe de tão respeitável corporação, com aquela abnegação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a substituir esse advérbio por outro qualquer, sem escolha, tais como: restritamente, completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc, etc ; ele só queria salvar a beleza da forma; não houve de que, o conselho, entrando uma vez no caminho da desconfiança, não tinha por costume
recuar.
Esteve ainda assim, vai não vai, a resolver-se pela adopção do categoricamente, agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem esse admitiu, e a medida foi rejeitada. Era pois diante deste vasto talento governativo que Maquelina fora enviada a implorar um diploma de pobre. Louvado seja Deus! até isto se implora!
— Mas — observou o judicioso presidente ao ouvi-la — pobre é todo aquele que não tem dinheiro.
Maquelina concordou. Pudera não. A definição satisfazia a todos os preceitos mencionados no Genuense; curta, clara, etc,  e t c ; e mais o nosso vereador não estudara lógica.
O homem continuou:
- E segundo é voz e fama vocês têm mundos e fundos.
Aqui principiava Maquelina a discordar, por infelicidade sua. Em única resposta mostrou os cobres que trazia.
— Eis a minha riqueza.
— Pois sim, pois sim... mas... olhe, disso não quero eu saber. É pobre ? Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e depois,.. depois... isso é com a junta de paróquia.
— Mas...
— Adeus, minha amiga, temos conversado.
E o oráculo emudeceu.
Maquelina ao sair levava uma cara, que seria a sua justificação, se o vereador acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas parece-me poder atestar o contrário. O bom homem chamaria tolo a Laváter, se o
tivesse conhecido.
Dali passou Maquelina a casa do pároco.
Eram horas da sesta e o reverendo dormia; único ponto de contacto que tinha com Homero. E que sono!
Bem pudera de seus paroquiais flancos elevar-se toda a bem provida árvore de Jessé, que está representada na nave direita da igreja dos Franciscanos no Porto, que ele rivalizaria em impassibilidade com
aquele venerável patriarca, que a sustenta.
Quando o foram acordar, o pastor daqueles povos resmungou, moveu-se, voltou-se para o outro lado e... continuou a dormir. À segunda tentativa, tornou a resmungar, tornou a mover-se, a voltar-se para o
outro lado e... tornou a dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfregou os olhos, abriu a boca estrepitosamente e não deu acordo de si; pôs-se a olhar depois para o travesseiro com visíveis tentações
de se precipitar de novo nele; obstou-o a criada, que voltou a chamá-lo â vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o evacuar dos pulmões obstruídos por um catarro crónico, o fungar de uma farta pitada, e enfim apareceu o homem em toda a magnitude da sua... gordura.
Dizem que o erguer do leito é a ocasião em que os monarcas são mais acessíveis a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça coroada, não se parecia neste particular com suas majestades; pelo contrário, se havia para ele horas de mau humor eram as que se seguiam ao momento em que a inexorável força das circunstâncias o obrigava a emergir de entre os lençóis, oceano, onde voluntariamente aquele sol e mergulhava.
— Oh! oh! — bradou o indolente levita ao ver Maquelina — então foi-se o homem?
— Assim o quis Nosso Senhor.
— E vamos a saber, quanto se herdou ?
Maquelina exibiu os quatrocentos réis, que era todo o espólio em metal.
— Histórias da Maria Carocha — resmungou o abade zangado.
— É isto que digo a V. S.*: meu irmão...
— Não me venha contar tonilhos. Diga lá o que quer?
Maquelina expôs o fim da visita. O padre arregalou os olhos.
— Ui! Essa é de barbas! Eu hei-de atestar que você é pobre!
Maquelina fez um sinal afirmativo.
— Ora, santinha, ora. E para isso fez-me acordar de um sono que... que...
— Mas, sr. abade, é a verdade que V. S.* atesta, e senão diga-me onde me encontra a riqueza?
— Seu irmão há-de ter deixado somas fabulosas!
— Pois venha V. Rev.ma ver e dirá depois. Jesus, meu Deus, procurem, procurem, oxalá que achassem, meu divino Pai do Céu
— Enfim, mulher, não me meta em trabalhos; vá ter-se com o regedor, e eu, o mais que posso fazer, é confirmar lá na junta o que ele certificar.
Maquelina passou à regedoria. O regedor era taberneiro, e naquele momento o seu duplo estabelecimento estava atulhado de fregueses.
As largas mãos deste vigilador da ordem pública distribuíam simultaneamente vinho e justiça aos circunstantes, e mais amplas medidas de justiça que de vinho a acreditarmos os consumidores. A entrada de Maquelina causou sensação.
O regedor, em pleno gozo do seu funcionalismo, dignou-se interrogar a irmã do falecido, e os olhos da importante autoridade, pondo nela:
— Então que a traz por aqui, Sr.* Maquelina? — disse com voz benigna. — Não é bonito andar assim já pela rua, quando tem seu irmão morto em casa. Que há-de dizer o público ?!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O Espólio do sr. Cipriano - Parte I

Júlio Dinis é um dos principais romancistas do Romantismo português. Para os próximos posts, colocarei o conto O Espólio do Sr. Cipriano. É um conto leve, divertido, inocente que retrata a inocência da ignorância. Sua publicação, primeiramente em jornal, consta agora no livro Serões da Província, uma coletânea de contos do autor. Nesses contos, assim como em seus romances, o autor descreve o campo português "em português". Pelo modo da descrição, imaginamos o sol, a relva, o vento, o resfolegamento para se chegar ao alto de cada morro, o sorriso ao observar a estrada de poeira, lá em baixo, mas não tão baixo, a alegria, o espírito leve e a saudade de não se sabe o quê. Nesse conto, porém há principalmente a inocência pura das pessoas simples.



O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte I


Desde que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à evidência dos factos desarraigá-la. Parece que à medida que um por um se vão quebrando os laços que a prendiam à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceitar, mais atractivos ela ostenta à fantasia popular, sempre afeiçoada ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das campinas.
Quando o povo vê fugir, por inverosímil, do campo da discussão um facto controvertido, é quanto mais se apressa a recebê-lo como dogma, a adoptá-lo com a cegueira da fé; é então que o transmite aos filhos, à maneira de um novo artigo do seu credo religioso, e olha para o que se atreve a levantar a mão iconoclasta contra esses vagos objectos do seu culto ideal como para um ímpio, digno da fulminação celeste.
De historiadores e biógrafos se ri; não há provas nem documentos que valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou ; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a exactidão à poesia, e admitindo em seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crónicas dos tempos passados é através das lendas que se pode procurar a história. Adornada com as galas e louçainhas do maravilhoso, é que o povo se apraz de acolher a tradição. Despida às mãos do historiador austero, parece afectar-lhe tão escandalosamente a vista, como a dos mais castos monges da Tebaida as formas nuas de tentadoras aparições.
Igualmente, ao lado da biografia exacta de um indivíduo, ainda dos mais obscuros, o povo refere de ordinário outra, menos documentada talvez, porém sempre mais curiosa.Com olhar perscrutador penetra o seio das famílias a descobrir aí factos recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais facilmente do que nos da vida pública, se reflectem os caracteres e as índoles.
Não julgueis que lhe basta a enumeração das batalhas, dos feitos brilhantes, dos serviços humanitários, dos actos civis do herói do dia; quer vê-lo em família, depois de despir a farda, a toga ou os arminhos, para envergar o modesto robe de chambre; aspira a devassar-lhe no modo de viver intimo e a estudar-lhe os hábitos; obriga a personagem da história a representar diante de si o papel de filho, de irmão, de amante, de esposo e de pai no drama da vida, e é então que mais interesse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe falecem as informações, inventa, recorre ao inesgotável tesouro da imaginação senão a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo verdadeiramente admirável ! Há o que quer que é sobrenatural na maneira por que se lhe revelam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas, interessadas ambas em conservá-los ignorados ; não espera por provas, satisfaz-se já com indícios ; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam, e, devemos confessá-lo, se em certos casos esta antecipação o leva ao erro, muitas vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o conduz a verdade.
Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a ciência humana. De onde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos fortes, os ignorantes e os ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece?
Suscita-se ãs vezes sobre qualquer indivíduo uma opinião que se diz pública, somente porque cada qual em particular se não atreve a reconhecê-la por sua; os factos conhecidos da vida desse homem parece desmentirem-na, todas as aparências lhe são contrárias, é humanamente impossível encontrar algures os fundamentos dessa crença, nascida não se sabe onde, propagada não se sabe como; e contudo persiste. Porquê? Quem o pode dizer? É, a meu ver, um facto da ordem de outros que observa o naturalista na história dos animais. É um fenomeno de instinto.
Na aproximação do Inverno, as aves viajoras reúnem-se em bandos para desertarem das paragens que parecia oferecerem-lhes ainda por algum tempo os últimos calores de uma estação favorável. Que indício lhes revelou o perigo ? Quem lhes apontou o caminho de mais amenas regiões ? O instinto, respondem os filósofos; e a mesma lesposta obtereis, se o interrogardes sobre tantos outros maravilhosos actos que nos surpreendem, nos costumes de certas famílias zoológicas.
Concedam, pois, também ao povo instintos, instintos que o fazem adivinhar factos ocultos, como a ave pressente o Inverno, instintos sobre os quais se elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio,
mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde.
O povo tem uma fisiologia especial, que ainda está por escrever; concurso de individualidades tão heterogéneas, dá uma resultante, cuja noção não nos pode vir só do conhecimento isolado dos componentes.
Quem o fosse estudar por uma análise minuciosa, quem, por um quase processo anatómico o decompusesse em elementos, para um a um os examinar com escrupuloso cuidado, não o teria compreendido; não seria mais feliz do que se procurasse resolver o problema da vida dissecando um cadáver, e aplicando o microscópio a cada fibra de seus tecidos e órgãos. Onde os homens se reúnem em povo, uma influência oculta se lhes associa: uma como inteligência comum, daí os enigmas da multidão.
A solução destes enigmas não a procurem portanto nos indivíduos, que neles não reside; está na entidade colectiva; assim como o modo de reagir do sal neutro não se encontra no ácido, nem na base,
seus elementos únicos; é o resultado da combinação. Sirvam estas reflexões de prefácio ao caso modesto e obscuro que vamos narrar e que as exemplifica.
Por uma das tais vozes interiores, que entretém o povo dos mais recatados mistérios da vida de família, como se linguareiro duende lhos andasse segredando ao ouvido, era que em uma pequena cidade da
província do Minho, havia muito se tornara opinião geral que Cipriano Martins, octogenário que vivia miseravelmente na mais estreita e mal esclarecida rua do menos limpo e povoado bairro daquela já de si não
muito apetecível terra, não obstante tais aparências pouco inculcadoras, possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela mais sórdida e inqualificável sovinice.
Nada podia modificar a opinião pública a este respeito; era absoluta, geral, intransigente, incapaz de vacilar, estável no seu posto, que defendia heroicamente contra o ataque combinado de todas as aparências ; sublime de pertinácia, admirável de resistência.
Nunca experimentara destas oscilações vulgares nas mais enraizadas crenças; nunca passara por as alternativas de desfavor que até as ideias mais generosas sofrem no correr das épocas, nunca; nem
quando os aguçados cotovelos do velho Cipriano rompiam escandalosamente através das mangas coçadas e beneméritas do seu casacão de saragoça; nem quando aos olhos dos comentadores se patenteavam as laceradas plantas... das botas colossais de que o nosso Harpagão usava, ou as numerosas cicatrizes — vestígios honrosos de longos anos de assinalados serviços — que lhe crivavam as calças, onde cada fábrica de tecidos tinha um espécime de seus produtos combinados todos em artístico mosaico.
Cada vez que o inofensivo tema dos longos e pouco misericordiosos comentários populares, entrava em uma loja a comprar os parcos materiais de sua diária alimentação e estendia a mão para receber os trocos miúdos, aos quais, como outro qualquer, tinha direitos incontestáveis e garantidos por lei, havia nos circunstantes certo resfolegar de mofa que, ao voltar costas o velho, degenerava em bem significativas e nada equívocas exclamações.
— Olhem o unhas de fome!
— Sume-te, porco!
— É capaz de se enforcar por um vintém !
— Se lhe caísse um pataco ao Inferno, atirava-se lá para apanhá-lo, o tinhoso.
— Sovina!
— A pobre irmã morre à míngua por causa da mesquinhez deste tesoureiro do Diabo.
— Come duas sardinhas barrentas, e cozinha só de três em três dias para não fazer despesa em lenha! Podem crê-lo ?
— Junta, junta, para outros to gastarem!
— O peso do teu cofre é que te há-de afogar na caldeira de Pêro Botelho!
E assim por diante iam as apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para a reputação do modesto velho, cujos nervos felizmente se não supraexcitavam com tais estímulos. Tinha uns invejáveis nervos o Sr. Cipriano! a única das suas qualidades que lhe podiam invejar as leitoras. Não há vício menos popular do que o da avareza, pela razão de serem poucos os que com ele lucram.
Assim Cipriano Martins era uma personagem antipática para os seus compatriotas.
Mas quem lhe vira o dinheiro? quem lhe descobrira a riqueza? Neste momento cada qual, interrogado à parte, encolhia os ombros, prolongava os beiços, enrugava a fronte, e respondia:
— Diz-se.
Santa palavra! salvatério das asserções arrojadas! como a consciência fica tranquila quando, após uma afirmação, cuja responsabilidade não quer, a boca oficiosa te pronuncia! Descendente em linha recta daquele traditur dos historiadores romanos, tu és, como teu ilustre avô, o melhor e mais universal excipiente, em que se administram ao público fortes doses de boatos, que ele engole de mais boamente do que quantas pílulas tem arredondado de Hipócrates para cá os dedos dos boticários ou apregoado os Holloways de todos os tempos.
Cipriano Martins tinha uma vez por ano as suas liberalidades, circunstância que, longe de amenizar a rudeza dos juízos públicos a seu respeito, antes a exacerbava; pois de facto nunca mais alto subiam as murmurações como quando em sexta-feira santa saía das algibeiras do sóbrio velho para as dos pobres da freguesia a quantia realmente importante de... cem réis em moedas de cinco. Então é que era ouvir o povo.
— Arrancou hoje cem fibras do coração.
— Tem para chorar cem dias, o velho.
— E para jejuar outros tantos.
— Se isto assim continua, aparece-nos de alguma vez o homem enforcado em sábado de Aleluia.
— Melhor, escusa o povo de queimar outro Judas.
Quando se entra na via das concessões é necessário não dar passos acanhados; sob pena de aumentar ainda mais a indisposição dos ânimos.
Consideração esta de longo alcance político, não obstante as aparências modestas que a revestem aqui.
Cipriano Martins caiu doente, e não chamou médico. A câmara, que adoptava o pensamento público sobre o estado financeiro do seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro dos pobres, razão pela qual o não visitou o médico de partido.
A câmara andou assisada nisto e mostrou-se convencida da seguinte verdade, saída da boca de um grande vulto político: «Quando os governos não tomam espontaneamente a iniciativa no movimento das massas, são arrastados por ela.»
Ora a câmara, que era o governo e não pouco respeitável, não tinha grande vontade de ser arrastada; um dos vereadores, mais que todos, em cuja caixa de rapé estava representado em gravura o fim trágico de Mazeppa, sentia de si para si um estremeção de grande desconforto só de ouvir o termo. Por isso, a câmara adoptou a opinião das massas,
Esta subiu ao auge da indignação, vendo Cipriano desprezar a medicina.
— Olhem o miserável a regatear às portas da morte o preço da vida!
— O homem tem razão — respondeu o barbeiro, a quem por consenso unânime fora decretado o diploma de espirituoso da terra — o homem tem razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.
Este dito do ilustrado superintendente das mais respeitáveis barbas da freguesia foi repetido em todos os círculos com geral aplauso; e a reputação de aguçado satírico, de que há muito gozava o digno colega de Figaro, aumentou, se de aumento era susceptível ainda.
Cipriano Martins morreu, e então é que a curiosidade pública se pôs alerta, e, para entreter o tempo de espera, prestou ouvidos às historietas da imaginação. Esta fez o seu dever, nada deixando a desejar.
Cipriano a cerrar os olhos, e o público mais do que nunca a tomá-lo à sua conta. Discutiu-se-lhe a herança, avaliou-se-lhe a fortuna, apontaram-se os herdeiros, inventaram-se testamentos, fantasiaram-se cláusulas absurdas, anteviram-se demandas, devassaram-se esconderijos, arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas monstruosas; isto tudo durante vinte e quatro horas, no fim das quais nem riquezas, nem esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem cláusulas e, por conseguinte, nem herdeiros nem demandas vieram justificar a geral expectativa.
Foi um desapontamento, que, a falar verdade, custou a digerir; os melhores estômagos imparam com ele e mais de uma vez foi regurgitado. E toda aquela boa gente se punha então a ruminá-lo de seu vagar, sem que o fizesse mais digerível.
A irmã do morto, que de si para si nunca nutrira grandes esperanças, porque nunca tivera fé nas riquezas do mano, apresentou-se nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a pedir-lhe que providenciasse para se fazer o enterro do velho Cipriano, pois, nas gavetas, só lhe encontrara uns cobres, que não bastavam para as despesas exigidas pela solenidade.
O administrador viera céptico de Coimbra, doença que apanhara nas margens do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crónica no concelho, que, como diziam os jornais da época, tão dignamente administrava. Por isso olhou para a pobre Maquelina — pois era esse o nome dela — através dos vidros da luneta pendente, ao mesmo tempo que o mais incrédulo sorriso, que o espelho lhe aconselhara, vinha
encrespar-lhe espirituosamente o lábio superior. Ao desbaste de crenças, que este magistrado sofrera, tinha por felicidade sobrevivido entre poucas a crença no espelho, um dos principais conselheiros a quem devia a manutenção da dignidade administrativa.
— Com que então só uns cobritos, diz vossemecê, hem?
O bacharel fizera a descoberta de que este hem lhe dava às palavras certa melodia de bom gosto, e por isso o adoptara.
— Eis tudo quanto possuo — respondeu Maquelina, mostrando em patacos um cruzado, quando muito — V. S.ª bem vê — continuou — meu irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há muito em decadência; ele, coitado, estava velho e não queria oficiais... e agora com a moléstia... por mais economias que a gente fizesse, sempre eram despesas certas e nenhum dinheiro a apurar.
O administrador teve aqui um movimento de lábios, expressivo de inveterada descrença; e como para mais depressa se livrar do contacto de um ser humano, respondeu secamente:
— Faça, se quiser, um requerimento à câmara, porque seu irmão não figura no quadro dos pobres.
E mais não disse.

sábado, 24 de novembro de 2012

Tiro de Guerra No. 35


Antônio Alcântara Machado escreveu principalmente sobre os imigrantes. Foi ele quem nos deixou um relato entre biográfico e literário da realidade paulista em transformação entre as décadas de 1920 e 1930. Período que transformou a pacata cidade de entroncamentos ferroviários no princípio da atual metrópole. Durante a primeira metade do século XX a população decuplicou. E quem Alcântara Machado retrata por sua participação forte nesse crescimento são os imigrantes italianos. Os quais vieram para trabalhar como costureiras, como Carmela, que se encheram de patriotismo brasileiro como Aristodemo e que enriqueceram e se misturaram à alta sociedade como Adriano Meli. E muitos de nós podemos ver a realidade em pais, avós que conhecemos e antigos fatos da vida. Mas foi devido à sua morte precoce, em 1935 que a obra de Alcântara Machado é tão reduzida. No entanto seus contos-crônicas são parte da literatura e objeto de admiração.


Tiro de Guerra número 35 - Alcântara Machado



No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:
- Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.
Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.
Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina.
Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.
E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Lingüiça) casou com um chofer de praça na policia.
Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.
Sua linha: Praça do Patriarca - Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras.
Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.
E não queria mesmo outra vida.
Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:
"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor.? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata..."
Fosse Mlle Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria. E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.035.
- Companhia! Per... filar!
No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.
- Meia volta! Vol... ver!
O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada.
- Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!
De novo não prestou.
- Firme!
Pareciam estacas.
- Meia volta!
Tremeram.
- Vol... ver!
Volveram.
- Abém!
Aristodemo era o base da segunda esquadra.
Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um. Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma espécie de.
- Você conhece o hino nacional, criatura?
- Puxa, se conheço, Seu Sargento!
- Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.
Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias. E o primeiro ensaio foi logo à noite.
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...
- Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!
Ou-viram do I-piranga as margens plácidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!
- Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE!
E o hino rolou ribombando:
... a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!
E o sol da li-berdade em raios ful...
De repente um barulho na segunda esquadra.
- Que isbregue é esse aí, criaturas?
Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.
- Está suspenso o ensaio. Podem debandar.
- Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!
- Que é que você está me dizendo, Aristodemo?
- Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era... um... eu chamei ele de... eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser... o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.
- Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.
"Ordem do Dia
De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.081, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.081, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partirdesta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções. Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!
São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."
Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.
Na mesma linha: Praça do Patriarca - Lapa.


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Rua de Rimas

O português é, como se diz, uma língua poética por natureza. Em Guilherme de Almeida, o poeta paulista tem em suas inúmeras obras poesias para e do cotidiano da primeira metade do século XX brasileiro. O poeta modernista, apesar de não ser um grande nome do período tem em suas obras toda a poesia da simplicidade. Os versos a seguir, publicados primeiramente no jornal estão entre os preferidos do autor, cuja obra mais conhecida é a Canção do Expedicionário. Figura dita simpática por quem o conheceu, foi dos grandes promotores do período ufanista da metrópole de São Paulo, a primeira metade do século XX.


A Rua de Rimas - Guilherme de Almeida


A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas, singelas, amarelas,
douradas, descabeladas, debruçadas como namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso;
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rara de opala de uma sala uma escala clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampiões espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata que mata…);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio…
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calças nuas,
correndo paralelamente, como a sorte diferente de toda gente, para a frente,
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranqüilidade: RUA DA FELICIDADE…

domingo, 18 de novembro de 2012

O sol é grande, caem co'a calma as aves

Francisco Sá de Miranda foi o introdutor do soneto na forma clássica além dos versos decassílabos em Portugal. Depois de ter estudado em Lisboa, viajou para a Itália onde teve contato com inúmeras personalidades literárias do tempo e de onde trouxe a nova estética de poesia em 1526. Há entre ele e Gil Vicente uma rixa famosa da qual não se sabe bem os motivos. Embora ele tenha sido à sua época menos apreciado do que o rival, é certo que foi o grande influenciador de Camões e foi sua moda literária que se estabeleceu e continuou na língua portuguesa.



O sol é grande, caem co'a calma as aves - Sá de Miranda



O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que soe ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-me-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O tempo passa? Não passa


Carlos Drummond de Andrade foi o último grande poeta brasileiro. Ou simplesmente o último poeta brasileiro. Foi o grande expoente da terceira geração do modernismo e morreu em 1987. Seu poema mais famoso, "no meio do caminho tinha uma pedra" não é nem o mais bonito, nem o mais poético, nem o mais filosófico, nem o mais profundo. Acho que é o mais fácil de decorar, o mais clichê, talvez. O poema a seguir também não é o mais nada. É simplesmente um punhado de versos de amor bonitinhos, leves e quase ingênuos. Bom para ler e mais ainda para se surpreender no meio dos pesados e/ou filosóficos poemas do autor.



O tempo passa? Não passa - Carlos Drummond de Andrade


O tempo passa ? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Juca Pirama - Parte II


Ao lermos o poema inteiro, vemos as diferenças de ritmos e cadencias de cada parte. Como cada parte expressa uma situação, há um tipo de ritmo para cada uma. A primeira e última partes são festas dos Timbiras, assim, a cadência é a mesma. E só no fim, descobre-se o eu-lírico da poesia, que é como que narrada em primeira pessoa por um velho timbira, em outra festa, mas sempre enquanto ele "pratica d'outrora". Também a maldição do pai mostra a toada triste e a história contada pelo moço tupi entrecortada e ofegante pelo temor. Vale a pena uma leitura integral para se reparar não só na história mas na relação com os ritmos de cada parte do poema.



Juca Pirama - Gonçalves Dias - Parte II



VI

- Filho meu, onde estás? 
- Ao vosso lado; 
Aqui vos trago provisões; tomai-as, 
As vossas forças restaurai perdidas, 
E a caminho, e já! 
- Tardaste muito! 
Não era nado o sol, quando partiste, 
E frouxo o seu calor já sinto agora! 
- Sim demorei-me a divagar sem rumo, 
Perdi-me nestas matas intrincadas, 
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; 
Convém partir, e já! 
- Que novos males 
Nos resta de sofrer? - que novas dores, 
Que outro fado pior Tupã nos guarda? 
- As setas da aflição já se esgotaram, 
Nem para novo golpe espaço intacto 
Em nossos corpos resta. 
- Mas tu tremes! 
- Talvez do afã da caça.... 
- Oh filho caro! 
Um quê misterioso aqui me fala, 
Aqui no coração; piedosa fraude 
Será por certo, que não mentes nunca! 
Não conheces temor, e agora temes? 
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, 
E contra o seu querer não valem brios. 
Partamos!... - 
E com mão trêmula, incerta 
Procura o filho, tacteando as trevas 
Da sua noite lúgubre e medonha. 
Sentindo o acre odor das frescas tintas, 
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente... 
Do filho os membros gélidos apalpa, 
E a dolorosa maciez das plumas 
Conhece estremecendo: - foge, volta, 
Encontra sob as mãos o duro crânio, 
Despido então do natural ornato!... 
Recua aflito e pávido, cobrindo 
Às mãos ambas os olhos fulminados, 
Como que teme ainda o triste velho 
De ver, não mais cruel, porém mais clara, 
Daquele exício grande a imagem viva 
Ante os olhos do corpo afigurada. 
Não era que a verdade conhecesse 
Inteira e tão cruel qual tinha sido; 
Mas que funesto azar correra o filho, 
Ele o via; ele o tinha ali presente; 
E era de repetir-se a cada instante. 
A dor passada, a previsão futura 
E o presente tão negro, ali os tinha; 
Ali no coração se concentrava, 
Era num ponto só, mas era a morte!

- Tu prisioneiro, tu? 
- Vós o dissestes. 
- Dos índios? 
- Sim. 
- De que nação? 
- Timbiras. 
- E a muçurana funeral rompeste, 
Dos falsos manitôs quebrastes maça... 
- Nada fiz... aqui estou. 
- Nada! - 
Emudecem; 
Curto instante depois prossegue o velho: 
- Tu és valente, bem o sei; confessa, 
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo! 
- Nada fiz; mas souberam da existência 
De um pobre velho, que em mim só vivia.... 
- E depois?... 
- Eis-me aqui. 
- Fica essa taba?

- Na direção do sol, quando transmonta. 
- Longe? 
- Não muito. 
- Tens razão: partamos. 
- E quereis ir?... 
- Na direção do acaso.


VII

"Por amor de um triste velho, 
Que ao termo fatal já chega, 
Vós, guerreiros, concedestes 
A vida a um prisioneiro. 
Ação tão nobre vos honra, 
Nem tão alta cortesia 
Vi eu jamais praticada 
Entre os Tupis, - e mas foram 
Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido, 
Nem nos combates por armas, 
Nem por nobreza nos atos; 
Aqui venho, e o filho trago. 
Vós o dizeis prisioneiro, 
Seja assim como dizeis; 
Mandai vir a lenha, o fogo, 
A maça do sacrifício 
E a muçurana ligeira: 
Em tudo o rito se cumpra! 
E quando eu for só na terra, 
Certo acharei entre os vossos, 
Que tão gentis se revelam, 
Alguém que meus passos guie; 
Alguém, que vendo o meu peito 
Coberto de cicatrizes, 
Tomando a vez de meu filho, 
De haver-me por se ufane!" 
Mas o chefe dos Timbiras, 
Os sobrolhos encrespando, 
Ao velho Tupi guerreiro 
Responde com tôrvo acento:

- Nada farei do que dizes: 
É teu filho imbele e fraco! 
Aviltaria o triunfo 
Da mais guerreira das tribos 
Derramar seu ignóbil sangue: 
Ele chorou de cobarde; 
Nós outros, fortes Timbiras, 
Só de heróis fazemos pasto. -

Do velho Tupi guerreiro 
A surda voz na garganta 
Faz ouvir uns sons confusos, 
Como os rugidos de um tigre, 
Que pouco a pouco se assanha!


VIII

"Tu choraste em presença da morte? 
Na presença de estranhos choraste? 
Não descende o cobarde do forte; 
Pois choraste, meu filho não és! 
Possas tu, descendente maldito 
De uma tribo de nobres guerreiros, 
Implorando cruéis forasteiros, 
Seres presa de via Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra, 
Sem arrimo e sem pátria vagando, 
Rejeitado da morte na guerra, 
Rejeitado dos homens na paz, 
Ser das gentes o espectro execrado; 
Não encontres amor nas mulheres, 
Teus amigos, se amigos tiveres, 
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia, 
Nem as cores da aurora te ameiguem, 
E entre as larvas da noite sombria 
Nunca possas descanso gozar: 
Não encontres um tronco, uma pedra, 
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, 
Padecendo os maiores tormentos, 
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre; 
Murchem prados, a flor desfaleça, 
E o regato que límpido corre, 
Mais te acenda o vesano furor; 
Suas águas depressa se tornem, 
Ao contacto dos lábios sedentos, 
Lago impuro de vermes nojentos, 
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido, 
Creste e punja teus membros malditos 
E oceano de pó denegrido 
Seja a terra ao ignavo tupi! 
Miserável, faminto, sedento, 
Manitôs lhe não falem nos sonhos, 
E do horror os espectros medonhos 
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso 
Que o teu corpo na terra embalsame, 
Pondo em vaso d’argila cuidoso 
Arco e frecha e tacape a teus pés! 
Sê maldito, e sozinho na terra; 
Pois que a tanta vileza chegaste, 
Que em presença da morte choraste, 
Tu, cobarde, meu filho não és."


IX

Isto dizendo, o miserando velho 
A quem Tupã tamanha dor, tal fado 
Já nos confins da vida reservada, 
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias 
Da sua noite escura as densas trevas 
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára! 
O grito que escutou é voz do filho, 
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes 
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma! 
- Esse momento só vale a pagar-lhe 
Os tão compridos trances, as angústias, 
Que o frio coração lhe atormentaram

De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. 
Ele que em tanta dor se contivera, 
Tomado pelo súbito contraste, 
Desfaz-se agora em pranto copioso, 
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem, 
Gritos, imprecações profundas soam, 
Emaranhada a multidão braveja, 
Revolve-se, enovela-se confusa, 
E mais revolta em mor furor se acende. 
E os sons dos golpes que incessantes fervem, 
Vozes, gemidos, estertor de morte 
Vão longe pelas ermas serranias 
Da humana tempestade propagando 
Quantas vagas de povo enfurecido 
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo 
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, 
Aturado labor de tantos anos, 
Derradeiro brasão da raça extinta, 
De um jacto e por um só se aniquilasse.

- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, 
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, 
E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços 
Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo bradando: 
"Este, sim, que é meu filho muito amado!

"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, 
"Corram livres as lágrimas que choro, 
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."


X

Um velho Timbira, coberto de glória, 
Guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro 
Cantar prisioneiro 
Seu canto de morte, que nunca esqueci: 
Valente, como era, chorou sem ter pejo; 
Parece que o vejo, 
Que o tenho nest’hora diante de mi.

"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! 
Pois não, era um bravo; 
Valente e brioso, como ele, não vi! 
E à fé que vos digo: parece-me encanto 
Que quem chorou tanto, 
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória, 
Guardava a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi. 
E à noite nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!"