Trechos da Carta do Autor ao amigo João Condé que o pediu que falasse um pouco sobre a confecção de Sagarana:
"Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a-China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores es talarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.
Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir.
Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, revendo paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.
O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).
Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos (titulo provisório, a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após. "
E quando descreve cada uma das histórias:
"VII) MINHA GENTE — Por causa de urna gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais."
Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte IV
Ontem, esteve aqui na fazenda um rapaz da vila. Bem vestido, simpático. Mas, logo que eu soube que ele viera quase somente para ver Maria Irma, tive-lhe ódio. E tive também o impulso de observar ao meu tio que os costumes da nossa terra estão progredindo demasiado depressa, e que quadravam melhor à suas austeridades de antanho.
O rapaz trouxe livros para minha prima. Penso mesmo ele os traz freqüentemente, porque ouvi Maria Irma falar-lhe em restituir outros. Livros em francês... Nunca pensei que minha prima os lesse. Também, ela hoje está toda diferente, mais bonita; por ocasião da minha chegada não se enfeitou assim! Entre Maria Irma e esse moço há qualquer coisa. Exaspero-me Detesto-os!
Ainda bem que um camarada veio dizer que estava passando ao largo, uma grande boiada, vinda do poente. Pedi um cavalo e fui para a estrada, e mui me serviu galopar ao sol, metade do dia, porque coisa mais bonita do que uma boiada não existe, não ser o pio do patativo-borrageiro, que é a tristeza punctiforme, ou a Lapa do Maquiné, onde a beleza reside.
Cheguei de volta em casa á noitinha. O outro, graças a Deus, já se fora. Maria Irma foi muito boazinha para mim. Incomodou-se por eu não querer jantar. Ofereceu-me compota de toranjas, e isso me pareceu peitamento. Com um esforço heróico, recusei: o doce tinha sido feito para o meu rival.
Maria Irma estranha os meus modos. Pergunta se estou doente. Então, bruscamente, a interpelo:
— Por que você nunca me disse que gostava de ler, Maria Irma?!
— Pois você nunca me perguntou...
— Esse rapaz é que é o seu noivo?
— Não, não é este... E, também, noiva eu não sou, você bem sabe!
— Não fique zangada comigo, prima...
— Não estou... Mas você não deve me olhar assim... Parece que quer me fotografar...
Recuo. O que eu queria era só apertá-la nos meus braços.
— Mas, quem é então aquele rapaz, Maria Irma?
— O Ramiro? É o noivo de Armanda, amiga minha...
— E quem é Armanda, Maria Irma? É bonita? Filha de fazendeiro? Mora aqui por perto?
— É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira porque o pai já morreu mora no Cedro.., e você é que nem um padre, para especular!
— E que vem fazer aqui o noivo, se tem uma noiva assim?
— Vem visitar-nos, quando tem de passar por aqui... Há algum mal na nossa amizade?
— E a outra sabe? Consente?
— Ela quer o que quer, e tem confiança em Ramiro, e em mim, que sou sua amiga...
— Não sou bem dessa teoria... Quando é o casamento?
— Armanda ainda não quis marcar a data...
— Ela domina o teu amigo, pelo que vejo...
— Não diga isso, primo, é absurdo!
— Maria Irma, sabe de uma coisa? Você gosta do Ramiro e o Ramiro gosta é de você. Apenas...
— Há outra coisa também, que você não sabe..
— Que é, prima?
— E que você é um imbecil, primo!
***
Chegou hoje cedo a máquina-de-escrever, encomenda de Tio Emílio, que a desencaixotou, pressuroso, promovendo-nos a seus secretários — Maria Irma e eu. É verdade que, a mim, de começo, ele nada pediu. Creio até que haja sorrido com malícia, ao ver a boa-vontade com que me ofereci para ajudar.
Mas, assim, pude passar o dia inteiro ao lado da minha prima. E juntos confeccionamos quase duas dezenas de cartas, na grande maioria destinadas a insignes analfabetos. No correr das horas, rascunhando “Prezado amigo e distinto correligionário” e “amo. obro.ato. ador.”, bem que eu projetei mais de uma investida, mas a coragem me faltou. Maria Irma agora não me fixava: espiava só para baixo, para o outro lado ou para a frente, se bem que eu às vezes lhe surpreendesse ligeiros olhares de viés.
À tarde, por fim, pus-me em brios, e me declarei, com veemência e transtorno. Maria Irma escutou-me, séria. A boquinha era quase linear; olhos tinham fundo, fogo, luz e mistério; e tonteava-me ainda mais o negrume encapelado dos cabelos. Quando eu ia repetir o meu amor pela terceira vez, ela, com voz tênue como cascata: orvalho, de folha em flor e flor em folha, respondeu-me:
— Em todos os outros que me disseram isso, eu acreditei... só em você é que eu não posso, não consigo acreditar...
Protestei, perdendo o resto do aprumo, com larga gesticulação e atropelo de argumentos.
Maria Irma sorriu:
— Gosto de ouvir você assim... Fica perfeitamente infantil... Eu fora às cordas. Mas ainda reagi:
— Quem sabe você me toma por um bicho-papão, Mariairmazinha?
E ela, empertigando a cabecinha, quase num desafio:
— Isso mesmo! Você disse bem.
Mas, nisso, o juiz entrou no ring, isto é, surgiu meu tio, entusiamadíssimo:
— Vamos escrever à Don’Ana do Janjão, da Panela-Cheia! Carta grande, palavreado escolhido. E outra para o bobo do marido... Mas não bota nada de que ele é bobo, aí, não, hein!?...
— Carta simples, Tio Emilio? Só para cumprimentar?
— Não. É avisando que eu troquei duas imagens para a capelinha do Retiro. Santa Ana e São João... E, como foi em honra deles dois, que são meus amigos, faço questão de que eles sejam os padrinhos!... Põe, na carta, que eu considero muita honra. Vou fazer festa: música, missa cantada, o diabo!
Maria Irma, sem pestanejar, me explica: Don’Ana do Janjão e Janjão da Don’Ana são respectivamente esposo e esposa, e, pois, coproprietários da fazenda da Panela-Cheia. Janjão da Don’Ana é um paspalhão, e não conta. Mas Don’Ana do Janjão é uma mulherhomem, que manda e desmanda, amansa cavalos, fuma cachimbo, anda armada de garrucha, e chefia eleitorado bem copioso, no município n° 3.
— Mas, meu tio, essa graciosa homenagem vai render-lhe pouco serviço... Os eleitores de Don’Ana do Janjão sendo de outro município...
Ora, que idéia, meu sobrinho! Então você pensa que é só por interesse que a gente agrada as pessoas de quem a gente gosta?... E mesmo que fosse... Mesmo que fosse, tem muita gente, da banda de cá das divisas, que morre para obedecer à minha comadre Don’Ana...
— Comadre?
— Uê! Pois não vai ser?... Ela mais o marido, que é muito boa Pessoa, não vão batizar as imagens que eu mandei vir para a capelinha? Pode escrever, pode pôr na carta: “Minha ilustríssima e prezada comadre...” e na outra: “querido e estimado compadre Coronel Janjão”. Ele não é coronel nenhum, mas não faz mal... Muito distinta, a comadre Don’Ana... E capaz de querei fazer com a gente um trato por fora: ela manda o pessoal dela por aqui votar comigo, e eu faço o mesmo com o povinho tenho por lá, no Piau...
— Falo nisso, na carta, tio?
— Nada. Por enquanto, nada... Mas, capricha, mesmo Pergunta como é que vai o Juquinha... Juquinha é o ai-jesus de la, é um menino que a minha comadre Don’Ana está criando.
***
Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irmã. Antes não o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para assentar o idílio, mais minha prima se mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente distante. Não importa, no começo é assim mesmo — pensei. Devo mostrar-me caído, enamorado.
Ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um “gambito do peão da Dama”, como Santana diria... Por onde andará Santana?
— Você não teve saudades de mim, Maria Irma?
— Que pergunta! Nós estamos na mesma casa, estivemos separados só nas horas de sono...
— Pois, para mim, já é demais, Maria Irma... Preciso da tua presença...
— Me diz outra coisa: você é ambicioso?
— Eu?
— Pois não é? Não é ambicioso?
— Não sei. Uma coisa, sim, eu ambiciono...
— Um automóvel?
— Maria Irma!
— Que cor de automóvel você prefere? Talvez o papai compre um...
Não ouvi o resto. Tudo saiu pior do que o pior que eu esperava! Maria Irma despreza a minha submissão. Tenho de jogar um “gambito do peão da Dama, recusado...”
***
No pastinho. Debaixo de um itapicuru, eu fumava, pensava, e apreciava a tropilha de cavalos, que retouçavam no gramado vasto. A cerca impedia que eles me vissem. E alguns estavam muito perto. No meio da rasa relva verde-água, uma poldra: deitada sobre a sua sombra. Arranjou um jeito de ajuntar bem as patas, e os olhos e a cabeça são tristes e velhos, na elástica infantilidade do corpo. Mas, há uma longa sugestão de maciez, nos pêlos felpos do pescoço.
O regato, acolá, azul claro, entre as margens de esmeralda, até parece abaulado. Para ele trota uma égua brilhantina — lisa e quente — que ao mover-se pega a desdobrar toalhas de carne, só músculos. Mas o poldrinho recém-nascido, ainda tão pernalta, vem pulando, atrás, aflito para mamar. Ao sumir o focinho sob o ventre e as coxas da mãe, todo o seu corpo é um alongar-se, de gula. A égua espera. Nunca ninguém soube dar com dignidade maior.
Aí, com o embornal e o cabresto, chegou o toquinho de gente preta de oito anos, que é o Moleque Nicanor.
— Que é que você veio fazer?
— Vim pegar o Vira-Saia, sim senhor, que patrão seu Emílio mandou...
— E você sabe?
— Pego, até sem precisar de milho nem cabresto! O senhor quer ver?
— Se fizer, ganha dois mil-réis. Moleque Nicanor arregalou os olhos, e eu pensei que ia vir as pancadas do seu coração.
Deixou comigo a capanga e o sedenho; foi acolá, cortou um cipó, e ajuntou pedrinhas no chapéu de palha.
— É prata mesmo que o senhor falou, ou é duzentorréis?
— Prata. Olha aqui...
A cem metros de nós, os cavalos pastavam calmamente.
— Uh, Coringa! Ei! Ei!...
Fazendo declarações de amor, com vozinha blandiciosa, Moleque Nicanor vai andando devagarinho, em ziguezagues, diretamente para os animais, mas para um ponto imaginário, vinte metros á esquerda do bando. Agora assovia e sacode o chapéu com as pedras. Coringa relincha. Vira-Saia levanta a cabeça. Moleque Nicanor pára. Espera um pouco. Continua.
Os cavalos se afastam, mais metros para oeste. Moleque Nicanor alcançou o ponto visado, mas a distância inicial de pouco diminuiu.
Moleque Nicanor recomeça a manobra. Aí, de repente, nitrindo, os animais desembestam a correr pela campina, de nas abertas, em galope circular. Moleque Nicanor não se precipita. Parece ter previsto e alarma. Deita-se no capim, e, bem no centro da circunferência, espera que os eqüinos se cansem e desistam de correr. Então, ele recomeça. Assoviando, andando, parando, falando, agitando as pedrinhas no chapéu. Ao fim de um quarto de hora, não bem o que ele fez, além de ter feito o pelo-sinal; mas atropilha se fracionou. Os outros foram para longe, em dois grupos, para a borda da mata. Vira-Saia ficou sozinho.
O negrinho se endereça a ele, mas agora com requintes de suaviloqüência. Já estão a menos de vinte passos um do outro. E decerto que Vira-Saia está pensando que as pedrinhas do chapéu são mesmo milho debulhado, porque ele não sabe se quer correr ou se prefere esperar.
— Eh, meu irmãozinho! Eta beleza de cavalinho, só p’ra moça bonita montar!... Híu! Híu!... Vem cá, meu irmãozinho, chega p’r’aqui... Híu! Híu!...
A voz do Moleque Nicanor é uma comprida carícia. As pedrinhas chocalham. O cipó está bem escondido, debaixo do braço. Parou.
— Meu irmãozinho cavalinho... Híu! Híu!... Irmãozinho...
A distância agora é mínima. Vira-Saia avançou, um quase nada. Moleque Nicanor já estava imóvel. Vira-Saia vem mais pa ra perto... Mais... Pronto! Com viva rapidez e simulada displicência, Moleque Nicanor jogou o cipó no pescoço do animal. Vira-Saia estremeceu, mas queda quieto, porque pensa que já está mesmo prisioneiro. E, dócil, aceita que Moleque Nicanor lhe bata a mão num punhado de crina, e lhe passe o cipó na boca, abotoando-o em barbicacho e deitando uma volta furtada ao redor do focinho. Pula no
lombo nu do cavalo, dando-lhe com os calcanhares nas costelas. E grita:
— Ei! Anda, égua magra! Piguancha!... Irmãozinho que nada! Já se viu cavalo nenhum serirmão de gente?!...
Tenho de pagar os dois mil-réis. E mesmo mais outros dois, porque Moleque Nicanor arranjou a estória de um chicote que ele teria perdido no meio do capim, e de um dinheiro que prometeu às almas do Purgatório, a troco de que elas lhe ensinassem onde era que o chicote estava.
— E você é capaz de fazer isso com qualquer cavalo?
— Dos daqui, qualquer um, afora o Caraúna, por causa ele é inteiro e vira fera, à toa, à toa: investe e amoita a gente a dente... Mas, se o senhor quiser mim dar outros dois mil-réis eu vou ver se caço jeito de campear ele p’ra o senhor ver.. Recuso a proposta. E Moleque Nicanor, sempre montado em pêlo, me toma a bênção e toca, a meio galope, sem nem ao menos fazer questão de substituir o cipó pelo cabresto.
E, nisto, fiquei sabendo, de repente, que tinha elaborado um plano. Tenho necessidade urgente de valorizar-me. Ah, Maria Irma!
Seo Juca Soares, da fazenda das Tranqueiras, a duas léguas daqui, sempre gostou de mim.
“Periquito” fanático, portanto inimigo político de Tio Emilio. Mas tem a Alda, que está muito bonita, dizem, e que, em outros tempos, tal qual Maria Irma foi minha namorada de brinquedo. Pois vou passear lá. Hoje mesmo. Vou passar o dia. Será que meu tio pode ficar zangado?
Nada, não se zangou; ao contrário:
— Eu acho até que não há mal nenhum em você ir.. . Vai, vai! Você vai já? Então, vamos juntos até no atalho da ponte, porque eu tenho de ir ver o Salvino, que vai ser do júri do Xandrão Cabaça...
Não esperava que fosse essa a reação do meu tio. Ficou quase entusiasmado com o meu projeto.
Simulando excesso de interesse pelo passeio, vim ver Maria Irma, que ficou imperturbável.
Pergunto:
— E verdade que a Aldinha do Juca está uma moça encantadora?
— É. Está muito engraçadinha... Sempre foi...
Silêncio. Sorriso ingênuo de Maria Irma. Assôo o nariz.
— Então, para você, tanto faz que eu me interesse ou por outra... Não é?
— Ninguém manda em coração...
— Me diz uma coisa, Maria Irma, você gosta um pouquinho de mim?
— Por que não? Gosto de todos os meus parentes... E você nunca me fez mal nenhum...
— Maria Irma!
— Olha, os cavalos já estão arreados... Lá vem papai. E você não deve se atrasar... Vai gostar da Alda... Só que você gostaria mais de Armanda...
— A noiva do teu Ramiro?
— Você é ridículo.
— Ele gosta de você. Você pensa que eu sou tolo?
— Eu, e só eu, sei quem gosta ou não de mim! — Também pode ser que ele goste de vocês duas... Como é ela? É alta?
— Não. Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita...
— Monta a cavalo?
— E guia automóvel, muito bem... E saída...
— Perdão, Maria Irma?
— É muito desembaraçada... Independente... Moderna...
— Deixemos esta conversa tola, Maria Irma...
— Deixemos. Até logo. Bom passeio!
Mordi os beiços e não gemi. Santana teria apenas classificado: partida empatada, por xeque perpétuo...
Vou passar o dia em casa do Juca Soares. E, conforme seja, amanhã lá volto, e mais todos os dias, e ainda mais dias, se preciso for! E onde é que anda esse Moleque Nicanor, mestre em tretas, para ganhar, à toa, à toa, mais dois mil-réis?!
Cavalgamos lado a lado, e Tio Emilio insiste no tema: que as coisas vão mal. Não tem confiança nos eleitores do São Tomé, nem nos do Marimbo... No Calambau tudo ainda está pior...
Mostra-se tão desfavorecido, que só falta garantir a derrota seu partido “João-de-Barro”...
Diz isso e repete, cinco, seis vezes, enquanto eu vou remoendo comigo os meus insignes pesares de amor. Passada a ponte, separamo-nos. Juca Soares recebeu-me muito bem. A Alda é bonita. Mas, tem olhos verdes... É clara demais, meio loura... Não se parece nada com Maria Irma... Não é Maria Irma!
Juca Soares também só fala da política: que tudo está rendo muito bem para os “Periquitos”. A vitória é certa...
O Governo dará apoio forte, vai mandar mais praças para o destacamento... E eu fico convencido da verdade de tudo isso.
Pouco demorei, conquanto muitos fossem os agrados. E casa, Tio Emílio já me esperava, ansioso, via-se. Contei-lhe conversa com o adversário. Pergunta:
— Que foi que você disse a ele?
— Não me lembro... Ah, sim: acho que disse que o senhor estava um pouco desanimado,que talvez aceitasse um acordo. ; Fiz mal?
Tio Emilio avança, de exultante:
— Fez muito bem, isto mesmo é que sapo queria! Eles a vão pensar que é verdade, e vão amolecer um pouco... Estou desanimado, qual nada!... Mas você costurou certo. E agora que tudo está mesmo bom, pois se o Juca Futrica contou prosa é porque as coisas para ele estão ruins... Você me rendeu servição, meu sobrinho.
Oh, céus! Até a minha inocente ida ao Juca Soares foi explorada em favor das manobras políticas do meu tio... Corro Maria Irma, que, frente ao espelho grande, acertava o comprimento de um vestido grená, estendendo-lhe as mangas em asas de ave e prendendo a gola com o mento. Sorriu, estendeu-me a mão, dobrou com cuidado o vestido.
— Que tal, a Aldinha? perguntou.
— Que tal você e eu, Maria Irma?
— Um pouco tolos... Um pouco primos.
— Falo a sério, Maria Irma!
— Por que não avisou?
— Por favor, um armistício... Quero parlamentar...
— Guarda a bandeirinha branca. Vou servir café a você...
— Só depois.
— Então, senta e fuma...
— Escuta, Maria Irma: eu gosto de você... Eu te amo!
—Você pensa que gosta...
— Acredita que seja verdade. Por um momento, só...
— Fiz de conta. E depois?
— Então...
— Solta a minha mão!... Você já devia de me conhecer bem, para saber que eu não gosto disso.
— Uma palavra, apenas, Maria Irma... Posso esperar?
— Não.
— Diga, Maria Irma, por favor!
— Não.
— Pelo menos, fica sabendo que eu adoro você, que...
— Não sei...
— Então, devo ir-me embora?
— Sim... Vai...
— Vou, Maria Irma!
— Espera... Para onde você vai?
— Primeiro para as Três Barras, amanhã mesmo. De lá, á Vila, e ás Tabocas, onde tomarei o trem...
— Espera... Não vá ainda... Fica mais uns dias...
— Por quê, Maria Irma? Para quê?
— É que... É que eu convidei Armanda para vir passar dias aqui, depois da eleição...
—Você é má, Maria Irma. — Não sou. Fica... Você vai gostar...
— Que astúcia você tem na cabecinha, prima?
— Bem, é melhor que você vá. Você era capaz de pensar que é por minha causa que eu estou pedindo...
— Adeus, Maria Irma... Irma Maria...
—Tenho um retrato de Armanda... Você quer ver?
— Mostra ao Ramiro!
—Teimoso!
-—Adeus, Maria Irma!
— Adeus, trapalhão!
***
E agora? Agora, vou-me embora para as Três Barras, onde mora o meu tio Ludovico, que não tem filha bonita nenhuma e não cuida de política. Vou, amanhã mesmo!
***
A Tio Emilio, aí que as eleições estavam beirando por pouco, custou concordar com a minha partida; falou em ingratidão e amuou. Maria Irma foi clássica: não disse pau e nem pedra. E eu, confesso, quase chorei, no caminho. Mas estava em cima de um burro pardo, e, desse modo, chorar seria falta de pudor.
Nas Três Barras, o mundo era outro: muitos vaqueiros cantores; muitas violas; muitos passeios; muito sofri por causa de Maria Irma...
Pensava: será que agora, com a minha ausência, Maria Irma não estaria começando a gostar de mim? E penava com isso, que o amor, ao contrário de acontecer como a água em dois vasos estanques, deva gangorrar como pesos em conchas de balança. E desesperava, ao sentir que eu acumulara comigo tanto amor que estava inútil, sem ter onde pousar.
Mais sofri, todavia, porque lua havia, uma lua onde cabiam todos os devaneios e em que podia beber qualquer imaginação. Da varanda, eu espiava um pedaço, dado ao luar, de ar claro; as árvores ficavam tão quietas, que aquele campo parecia correr, como um vau de riacho raso, de transparência movente. As vacas, àquela hora, mugiam imenso, apartadas dos bezerros. Os dias me cansavam muito, mas eu não conseguia dormir. Pelas frinchas da janela, entrava o mato em insônia, com vozes que eu não entendia. E, às vezes, tarde da noite, ouvia, do curral, bruscos estrépitos — bufos, pisoteios, e um trafegar a esmo —
excursões do gado sonambúlico.
E eu pensava, sempre em Maria Irma.
Mas o único acontecimento mesmo acabrunhante foi produzido por um papagaio, geral e caduco, já revertido ao silêncio, que cochilava em seu poleiro, mas que, um dia, lembrando-se de outrora, entortou a cabeça, me olhou com um olho, e, esganiçado, cantou:
“Cadê Mariquinha?
Foi passiá... Entrou no balão
Virou fogo do á!...”
— Gagá idiota! Deixa de cantar bobagens!
— Fogo... Fogo!... Prrrr... Fogo!... Fogo do á!...
Mas, aí, a negrinha Carmelinda chegou e explicou:
— É por causa que essa-uma é a cantiga que a gente e p’ra todos os papagaios... E é a derradeira que eles esquecem, quando já estão velhinhos...
Ri e deixei o purrutaco dormir. Melhorei.
E aí foi que tive notícia de que as eleições tinham corrido, com estrondoso triunfo do partido “João-de-Barro”. E assim chegou também o dia em que apareceu nas Três Barras um camarada do Tio Emílio, trazendo duas cartas para mim.
Abri o primeiro envelope, com excessiva pressa: continha um recado, à máquina, do meu tio, celebrando a vitória e insistindo para que eu voltasse. Aquela folha de papel tinha passado, pelas mãos, pelos dedos morenos de Maria Irma!
Mas, havia também o outro envelope, e eu abri, com preguiça, o outro envelope. Céus!
Santana, outra vez! ... Somente isto:
“Caríssimo, — analisando a posição em que interrompemos aquela Zuckertort-Réti, na viagem a cavalo, verifiquei que o jogo não estava perdido para mim. Ao contrário! Junto o diagrama, porque não confio muito na sua memória, desculpe. Mas, veja o avanço do cavalo preto a 5C, e, em seguida, B3D, e o outro bispo batendo a grande diagonal, e...veja, oh, ajuizado moço Telêmaco, na quarta jogada, o tremendo ataque frontal dos peões negros, contra o roque branco. Indefendível! Xeque-mate!
Continuemos, por correspondência. Escreva para Pará -de-Minas.
Seu,
SANTANA.”
Pulei do banco, e gritei de alegria. Os novilhos, que enchiam o curral esperando a marcação, pareceram-me um exército, aguardando ordens minhas para arremeterem em fileiras. O dia ficou, de repente, o mais bonito e bendito. Gritei mesmo:
— Saltem um cálice da branquinha potabilíssima de Januária que está com um naco de umburana macerando no fundo da garrafa!... E cavalo arreado, já, já, para eu voltar para o Saco-do-Sumidouro... Desistir, nem de ser idiota não convém! Viva Santana, com os seus peões! Viva o xeque-do-pastor! Viva qual quer coisa!... Volto! Vou lá.
E não adiantou a insistência do tio Ludovico:
—Amanhã cedo você vai... Espera ao menos a ferra dos garrotes, que é coisa bonita, de que você vai gostar...
E nem os sábios conselhos do Viriato, vaqueiro campeão da “derruba do boi pela seda” e mateiro meu confidente em assuntos de amor:
— O senhor não deve de ir, porque torna a ficar gostando... Isso de querer-bem da gente é que nem avenca-peluda, que murcha e, depois de tempo, tendo água outra vez, fica verde... E que nem galho grosso de timbaúba, que está seco, e, a gente fincando p’ra fazer cerca, brota logo e põe raiz!...
— Nada disso, Viriato! Eu tenho opinião. Não cedo!... Mas quero que ela saiba que eu não gosto dela mais... expliquei, já afivelando as esporas.
E Viriato, curvando-se para me ajudar, abanou a cabeça e de clamou:
— Flor de angico-verdadeiro dura seis meses no pé...
Mas não era curta a viagem das Três Barras ao Saco-do-Sumidouro, tanto que houve tempo para pensar e sentir. Amplos Campos navegantes; depois, o mato montano, onde pia o zabelê. Por aí, tive cansaço e vergonha de tudo o que antes eu ra e fizera, e foram notáveis os meus pensamentos. O pio do zabelê é escandido e gemido. A estrada do amor, a gente já está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino.
E a casa do amor — em cuja porta não se chama e não se espera — fica um pouco mais adiante.
— Éco! Éco! - gritavam os tucanos verdes.
— Óco! Óco! — ralhavam os tucano-açus.
***
Cheguei numa tarde assaz bonita e quente, porque era fim de janeiro com veranico. Meu tio estava na varanda, deitado na rede, com um monte de cartas e telegramas ao alcance da mão. Achei-o um pouco abatido. Mais magro.No alto da parede, os marimbondos tinham crescido novos cortiços oblongos. E as rosas amarelas forjam.
Tio Emilio me reteve abraçado, falando-me ao ouvido, com voz grossa e ronronante:
— Então, hein! Que arraso! Agora não há mais periquito para tomar casa que joão-de-barro fez!...
E, desprendendo-me, por fim:
— Olha o que o Presidente do Estado me mandou: que telegrama! Não pode haver mais periquito. É ali! Tretou, relou, tijolo nas costas!...
Mas, justamente agora, que se afastara um pouco, era que Tio Emílio abaixava a voz:
— O pior foi que eu tive um prejuízo grande... Gastei para mais de uns oitenta contos... Um estrago!... Estou pensando em fazer um acordo na política, em desde que eu fique sendo o chefe...
E, numa onda brusca de carinho,Tio Emilio abraçou-me outra vez.
— Onde está Maria Irma? — perguntei. Estava no jardim, e tinha mesmo de estar no jardim. Mas não estava só.
Ruborizou-Se. Ofegou. E apresentou-me à outra.
— Meu primo... Armanda...
Armanda tinha uma expressão severa, e foi muito inóspito o seu olhar. Quase uma zanga.
— Com cada um de vocês já falei muito do outro... —acrescentou Maria Irma.
Hesitei. Armanda recuara um passo, e fingiu olhar o jasmineiro. Murmurei:
— Então, Maria Irma, surpreendi você com a minha volta...
— Fico alegre...
— De verdade?
— Não começa outra vez. Você não compreende...
Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos.
— Vou ver, papai chamou... Me esperem... explicou Maria Irma, abrindo vôo.
— Prefiro caminhar. Quer? perguntou-me Armanda.
Quis. Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim com a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.
— Você está querendo tomar-me o pêlo?!
— Que é isso, Armanda?
— Nada. Vamos!
Urna lavadeira cantava, lá na beira do rego:
“De madrugada,
quando a lua se escondia...
o sol raiava
na janela de Maria...”
Vinha um odor duro, das flores carminadas. Os aloendros. em fila, nos separavam do mundo. Pensamentos me agitavam; Queria...
—Você gosta de Maria Irma?
— Não...
— De quem?
— De você... Sempre gostei. Sempre! Antes de saber você existia...
— É engraçado...
— É verdade. Não... Não é isso...
Armanda jogou fora o botão de bogari, e entrecruzou os dedos. E disse:
— É com você que eu vou casar.
— Comigo!?...
— Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é uso?
***
E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima, Maria Irma com o moço Ramiro Gouveia, dos Gouveias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.