quarta-feira, 31 de outubro de 2012

À Conceição Imaculada de Maria Santíssima

Gregório de Matos é considerado o pai da poesia brasileira. Ao mesmo tempo em que escreveu poesias sacras de sublime piedade, escrevia também sátiras totalmente mundanas. Ele foi sem dúvida o grande e primeiro expoente da poesia barroca. Sua poesia sacra utiliza as formas clássicas de soneto e linguagem mais rebuscada. No entanto, a clareza e certa simplicidade nas linhas de raciocínio tornam suas poesias claras e acessíveis. Já a poesia satírica usa mais formas populares e muitas vezes escondem o verdadeiro sentido que se queria passar na época.



À Conceição Imaculada de Maria Santíssima - Gregório de Matos


Para Mãe, para Esposa, Templo e Filha,
Decretou a Santíssima Trindade
Lá da sua profunda eternidade
A Maria, a quem fez com maravilha.

E como esta na graça tanto brilha,
No cristal de tão pura claridade
A Segunda Pessoa humanidade
Pela culpa de Adão tomar, se humilha.

Para que foi aceita a tal Menina?
Para emblema do Amor, obra piedosa
Do Padre, Filho, e Pomba essência trina:

É logo conseqüência esta forçosa,
Que Estrela, que fez Deus tão cristalina
Nem por sombras da sombra a mancha goza.

domingo, 28 de outubro de 2012

Nossas Madres Vam a Sam Simon


Entre a aurora da literatura portuguesa certamente as cantigas de amor e de amigo tem o primeiro lugar. Era uma das bases, ainda antes de ser trazida a forma clássica italiana de soneto. Existem muitas cantigas certamente mais importantes do que a seguinte. Escolhi essa no entanto por ser uma cantiga de amigo, ou seja, com o eu-lírico feminino, onde o refrão é bem claro e bem colocado e retrata cenas da vida cotidiana ao invés do amor cortês de sonho das cantigas de amor. Além disso, por ser em galego-português, a maioria delas é de difícil compreensão. Essa é bem clara, tanto no sentido geral como nas palavras antigas.


Nossas Madres Vam a Sam Simon - Pero Viviães


Pois nossas madres vam a Sam Simom
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e elas entom
       queimem candeas por nós e por si,
       e nós, meninhas, bailaremos i.
 
Nossos amigos todos lá irám
por nos veer e andaremos nós
bailand'ant'eles fremosas em cós;
e nossas madres, pois que alá vam,
       queimem candeas por nós e por si.
       e nós, meninhas, bailaremos i.
 
Nossos amigos irám por cousir
como bailamos e podem veer
bailar [i] moças de bom parecer;
e nossas madres, pois lá querem ir,
       queimem candeas por nós e por si,
       e nós, meninhas, bailaremos i.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Minha Gente - Parte IV


Trechos da Carta do Autor ao amigo João Condé que o pediu que falasse um pouco sobre a confecção de Sagarana:


"Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a-China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores es talarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.
Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir.
Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, revendo paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.
O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).
Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos (titulo provisório, a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após. "

E quando descreve cada uma das histórias:



"VII)  MINHA GENTE —   Por causa de urna gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais."


Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte IV


Ontem, esteve aqui na fazenda um rapaz da vila. Bem vestido, simpático. Mas, logo que eu soube que ele viera quase somente para ver Maria Irma, tive-lhe ódio. E tive também o impulso de observar ao meu tio que os costumes da nossa terra estão progredindo demasiado depressa, e que quadravam melhor à suas austeridades de antanho.
O rapaz trouxe livros para minha prima. Penso mesmo ele os traz freqüentemente, porque ouvi Maria Irma falar-lhe em restituir outros. Livros em francês... Nunca pensei que minha prima os lesse. Também, ela hoje está toda diferente, mais bonita; por ocasião da minha chegada não se enfeitou assim! Entre Maria Irma e esse moço há qualquer coisa. Exaspero-me Detesto-os!
Ainda bem que um camarada veio dizer que estava passando ao largo, uma grande boiada, vinda do poente. Pedi um cavalo e fui para a estrada, e mui me serviu galopar ao sol, metade do dia, porque coisa mais bonita do que uma boiada não existe, não ser o pio do patativo-borrageiro, que é a tristeza punctiforme,  ou a Lapa do Maquiné, onde a beleza reside.
Cheguei de volta em casa á noitinha. O outro, graças a Deus, já se fora. Maria Irma foi muito boazinha para mim. Incomodou-se por eu não querer jantar. Ofereceu-me compota de toranjas, e isso me pareceu peitamento. Com um esforço heróico, recusei: o doce tinha sido feito para o meu rival.
Maria Irma estranha os meus modos. Pergunta se estou doente. Então, bruscamente, a interpelo:
— Por que você nunca me disse que gostava de ler, Maria Irma?!
— Pois você nunca me perguntou...
— Esse rapaz é que é o seu noivo?
— Não, não é este... E, também, noiva eu não sou, você bem sabe!
— Não fique zangada comigo, prima...
— Não estou... Mas você não deve me olhar assim... Parece que quer me fotografar...
Recuo. O que eu queria era só apertá-la nos meus braços.
— Mas, quem é então aquele rapaz, Maria Irma?
— O Ramiro? É o noivo de Armanda, amiga minha...
— E quem é Armanda, Maria Irma? É bonita? Filha de fazendeiro? Mora aqui por perto?
— É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira porque o pai já morreu mora no Cedro.., e você é que nem um padre, para especular!
— E que vem fazer aqui o noivo, se tem uma noiva assim?
— Vem visitar-nos, quando tem de passar por aqui... Há algum mal na nossa amizade?
— E a outra sabe? Consente?
— Ela quer o que quer, e tem confiança em Ramiro, e em mim, que sou sua amiga...
— Não sou bem dessa teoria... Quando é o casamento?
— Armanda ainda não quis marcar a data...
— Ela domina o teu amigo, pelo que vejo...
— Não diga isso, primo, é absurdo!
— Maria Irma, sabe de uma coisa? Você gosta do Ramiro e o Ramiro gosta é de você. Apenas...
— Há outra coisa também, que você não sabe..
— Que é, prima?
— E que você é um imbecil, primo!

***

Chegou hoje cedo a máquina-de-escrever, encomenda de Tio Emílio, que a desencaixotou, pressuroso, promovendo-nos a seus secretários — Maria Irma e eu. É verdade que, a mim, de começo, ele nada pediu. Creio até que haja sorrido com malícia, ao ver a boa-vontade com que me ofereci para ajudar.
Mas, assim, pude passar o dia inteiro ao lado da minha prima. E juntos confeccionamos quase duas dezenas de cartas, na grande maioria destinadas a insignes analfabetos. No correr das horas, rascunhando “Prezado amigo e distinto correligionário” e “amo. obro.ato. ador.”, bem que eu projetei mais de uma investida, mas a coragem me faltou. Maria Irma agora não me fixava: espiava só para baixo, para o outro lado ou para a frente, se bem que eu às vezes lhe surpreendesse ligeiros olhares de viés.
À tarde, por fim, pus-me em brios, e me declarei, com veemência e transtorno. Maria Irma escutou-me, séria. A boquinha era quase linear; olhos tinham fundo, fogo, luz e mistério; e tonteava-me ainda mais o negrume encapelado dos cabelos. Quando eu ia repetir o meu amor pela terceira vez, ela, com voz tênue como cascata: orvalho, de folha em flor e flor em folha, respondeu-me:
— Em todos os outros que me disseram isso, eu acreditei... só em você é que eu não posso, não consigo acreditar...
Protestei, perdendo o resto do aprumo, com larga gesticulação e atropelo de argumentos.
Maria Irma sorriu:
— Gosto de ouvir você assim... Fica perfeitamente infantil... Eu fora às cordas. Mas ainda reagi:
— Quem sabe você me toma por um bicho-papão, Mariairmazinha?
E ela, empertigando a cabecinha, quase num desafio:
— Isso mesmo! Você disse bem.
Mas, nisso, o juiz entrou no ring, isto é, surgiu meu tio, entusiamadíssimo:
— Vamos escrever à Don’Ana do Janjão, da Panela-Cheia! Carta grande, palavreado escolhido. E outra para o bobo do marido... Mas não bota nada de que ele é bobo, aí, não, hein!?...
—  Carta simples, Tio Emilio? Só para cumprimentar?
— Não. É avisando que eu troquei duas imagens para a capelinha do Retiro. Santa Ana e São João... E, como foi em honra deles dois, que são meus amigos, faço questão de que eles sejam os padrinhos!... Põe, na carta, que eu considero muita honra. Vou fazer festa: música, missa cantada, o diabo!
Maria Irma, sem pestanejar, me explica: Don’Ana do Janjão e Janjão da Don’Ana são respectivamente esposo e esposa, e, pois, coproprietários da fazenda da Panela-Cheia. Janjão da Don’Ana é um paspalhão, e não conta. Mas Don’Ana do Janjão é uma mulherhomem, que manda e desmanda, amansa cavalos, fuma cachimbo, anda armada de garrucha, e chefia eleitorado bem copioso, no município n° 3.
— Mas, meu tio, essa graciosa homenagem vai render-lhe pouco serviço... Os eleitores de Don’Ana do Janjão sendo de outro município...
Ora, que idéia, meu sobrinho! Então você pensa que é só por interesse que a gente agrada as pessoas de quem a gente gosta?... E mesmo que fosse... Mesmo que fosse, tem muita gente, da banda de cá das divisas, que morre para obedecer à minha comadre Don’Ana...
— Comadre?
— Uê! Pois não vai ser?... Ela mais o marido, que é muito boa Pessoa, não vão batizar as imagens que eu mandei vir para a capelinha? Pode escrever, pode pôr na carta: “Minha ilustríssima e prezada comadre...” e na outra: “querido e estimado compadre Coronel Janjão”. Ele não é coronel nenhum, mas não faz mal... Muito distinta, a comadre Don’Ana... E capaz de querei fazer com a gente um trato por fora: ela manda o pessoal dela por aqui votar comigo, e eu faço o mesmo com o povinho tenho por lá, no Piau...
— Falo nisso, na carta, tio?
— Nada. Por enquanto, nada... Mas, capricha, mesmo Pergunta como é que vai o Juquinha... Juquinha é o ai-jesus de la, é um menino que a minha comadre Don’Ana está criando.

***

Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irmã. Antes não o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para assentar o idílio, mais minha prima se mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente distante. Não importa, no começo é assim mesmo — pensei. Devo mostrar-me caído, enamorado.
Ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um “gambito do peão da Dama”, como Santana diria... Por onde andará Santana?
— Você não teve saudades de mim, Maria Irma?
— Que pergunta! Nós estamos na mesma casa, estivemos separados só nas horas de sono...
— Pois, para mim, já é demais, Maria Irma... Preciso da tua presença...
— Me diz outra coisa: você é ambicioso?
— Eu?
— Pois não é? Não é ambicioso?
— Não sei. Uma coisa, sim, eu ambiciono...
— Um automóvel?
— Maria Irma!
— Que cor de automóvel você prefere? Talvez o papai compre um...
Não ouvi o resto. Tudo saiu pior do que o pior que  eu esperava! Maria Irma despreza a minha submissão. Tenho de jogar um “gambito do peão da Dama, recusado...”

***

No pastinho. Debaixo de um itapicuru, eu fumava, pensava, e apreciava a tropilha de cavalos, que retouçavam no gramado vasto. A cerca impedia que eles me vissem. E alguns estavam muito perto. No meio da rasa relva verde-água, uma poldra: deitada sobre a sua sombra. Arranjou um jeito de ajuntar bem as patas, e os olhos e a cabeça são tristes e velhos, na elástica infantilidade do corpo. Mas, há uma longa sugestão de maciez, nos pêlos felpos do pescoço.
O regato, acolá, azul claro, entre as margens de esmeralda, até parece abaulado. Para ele trota uma égua brilhantina — lisa e quente — que ao mover-se pega a desdobrar toalhas de carne, só músculos. Mas o poldrinho recém-nascido, ainda tão pernalta, vem pulando, atrás, aflito para mamar. Ao sumir o focinho sob o ventre e as coxas da mãe, todo o seu corpo é um alongar-se, de gula. A égua espera. Nunca ninguém soube dar com dignidade maior.
Aí, com o embornal e o cabresto, chegou o toquinho de gente preta de oito anos, que é o Moleque Nicanor.
— Que é que você veio fazer?
— Vim pegar o Vira-Saia, sim senhor, que patrão seu Emílio mandou...
— E você sabe?
— Pego, até sem precisar de milho nem cabresto! O senhor quer ver?
— Se fizer, ganha dois mil-réis. Moleque Nicanor arregalou os olhos, e eu pensei que ia vir as pancadas do seu coração.
Deixou comigo a capanga e o sedenho; foi acolá, cortou um cipó, e ajuntou pedrinhas no chapéu de palha.
— É prata mesmo que o senhor falou, ou é duzentorréis?
— Prata. Olha aqui...
A cem metros de nós, os cavalos pastavam calmamente.
— Uh, Coringa! Ei! Ei!...
Fazendo declarações de amor, com vozinha blandiciosa,  Moleque Nicanor vai andando devagarinho, em ziguezagues, diretamente para os animais, mas para um ponto imaginário, vinte metros á esquerda do bando. Agora assovia e sacode o chapéu com as pedras. Coringa relincha. Vira-Saia levanta a cabeça. Moleque Nicanor pára. Espera um pouco. Continua.
Os cavalos se afastam, mais metros para oeste. Moleque Nicanor alcançou o ponto visado, mas a distância inicial de pouco diminuiu.
Moleque Nicanor recomeça a manobra. Aí, de repente, nitrindo, os animais desembestam a correr pela campina, de nas abertas, em galope circular. Moleque Nicanor não se precipita. Parece ter previsto e alarma. Deita-se no capim, e, bem no centro da circunferência, espera que os eqüinos se cansem e desistam de correr. Então, ele recomeça. Assoviando, andando, parando, falando, agitando as pedrinhas no chapéu. Ao fim de um quarto de hora, não bem o que ele fez, além de ter feito o pelo-sinal; mas atropilha se fracionou. Os outros foram para longe, em dois grupos, para a borda da mata. Vira-Saia ficou sozinho.
O negrinho se endereça a ele, mas agora com requintes de suaviloqüência. Já estão a menos de vinte passos um do outro. E decerto que Vira-Saia está pensando que as pedrinhas do chapéu são mesmo milho debulhado, porque ele não sabe se quer correr ou se prefere esperar.
— Eh, meu irmãozinho! Eta beleza de cavalinho, só p’ra moça bonita montar!... Híu! Híu!... Vem cá, meu irmãozinho, chega p’r’aqui... Híu! Híu!...
A voz do Moleque Nicanor é uma comprida carícia. As pedrinhas chocalham. O cipó está bem escondido, debaixo do braço. Parou.
— Meu irmãozinho cavalinho... Híu! Híu!... Irmãozinho...
A distância agora é mínima. Vira-Saia avançou, um quase nada. Moleque Nicanor já estava imóvel. Vira-Saia vem mais pa ra perto... Mais... Pronto! Com viva rapidez e simulada displicência, Moleque Nicanor jogou o cipó no pescoço do animal. Vira-Saia estremeceu, mas queda quieto, porque pensa que já está mesmo prisioneiro. E, dócil, aceita que Moleque Nicanor lhe bata a mão num punhado de crina, e lhe passe o cipó na boca, abotoando-o em barbicacho e deitando uma volta furtada ao redor do focinho. Pula no
lombo nu do cavalo, dando-lhe com os calcanhares nas costelas. E grita:
— Ei! Anda, égua magra! Piguancha!... Irmãozinho que nada! Já se viu cavalo nenhum serirmão de gente?!...
Tenho de pagar os dois mil-réis. E mesmo mais outros dois, porque Moleque Nicanor arranjou a estória de um chicote que ele teria perdido no meio do capim, e de um dinheiro que prometeu às almas do Purgatório, a troco de que elas lhe ensinassem onde era que o chicote estava.
— E você é capaz de fazer isso com qualquer cavalo?
— Dos daqui, qualquer um, afora o Caraúna, por causa ele é inteiro e vira fera, à toa, à toa: investe e amoita a gente a dente... Mas, se o senhor quiser mim dar outros dois mil-réis eu vou ver se caço jeito de campear ele p’ra o senhor ver.. Recuso a proposta. E Moleque Nicanor, sempre montado em pêlo, me toma a bênção e toca, a meio galope, sem nem ao menos fazer questão de substituir o cipó pelo cabresto.
E, nisto, fiquei sabendo, de repente, que tinha elaborado um plano. Tenho necessidade urgente de valorizar-me. Ah, Maria Irma!
Seo Juca Soares, da fazenda das Tranqueiras, a duas léguas daqui, sempre gostou de mim.
“Periquito” fanático, portanto inimigo político de Tio Emilio. Mas tem a Alda, que está muito bonita, dizem, e que, em outros tempos, tal qual Maria Irma foi minha namorada de brinquedo. Pois vou passear lá. Hoje mesmo. Vou passar o dia. Será que meu tio pode ficar zangado?
Nada, não se zangou; ao contrário:
— Eu acho até que não há mal nenhum em você ir.. . Vai, vai! Você vai já? Então, vamos juntos até no atalho da ponte, porque eu tenho de ir ver o Salvino, que vai ser do júri do Xandrão Cabaça...
Não esperava que fosse essa a reação do meu tio. Ficou quase entusiasmado com o meu projeto.
Simulando excesso de interesse pelo passeio, vim ver Maria Irma, que ficou imperturbável.
Pergunto:
— E verdade que a Aldinha do Juca está uma moça encantadora?
— É. Está muito engraçadinha... Sempre foi...
Silêncio. Sorriso ingênuo de Maria Irma. Assôo o nariz.
— Então, para você, tanto faz que eu me interesse ou por outra... Não é?
— Ninguém manda em coração...
— Me diz uma coisa, Maria Irma, você gosta um pouquinho de mim?
— Por que não? Gosto de todos os meus parentes... E você nunca me fez mal nenhum...
— Maria Irma!
— Olha, os cavalos já estão arreados... Lá vem papai. E você não deve se atrasar... Vai gostar da Alda... Só que você gostaria mais de Armanda...
— A noiva do teu Ramiro?
— Você é ridículo.
— Ele gosta de você. Você pensa que eu sou tolo?
— Eu, e só eu, sei quem gosta ou não de mim! — Também pode ser que ele goste de vocês duas... Como é ela? É alta?
— Não. Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita...
— Monta a cavalo?
— E guia automóvel, muito bem... E saída...
— Perdão, Maria Irma?
— É muito desembaraçada... Independente... Moderna...
— Deixemos esta conversa tola, Maria Irma...
— Deixemos. Até logo. Bom passeio!
Mordi os beiços e não gemi. Santana teria apenas classificado: partida empatada, por xeque perpétuo...
Vou passar o dia em casa do Juca Soares. E, conforme seja, amanhã lá volto, e mais todos os dias, e ainda mais dias, se preciso for! E onde é que anda esse Moleque Nicanor, mestre em tretas, para ganhar, à toa, à toa, mais dois mil-réis?!
Cavalgamos lado a lado, e Tio Emilio insiste no tema: que as coisas vão mal. Não tem confiança nos eleitores do São Tomé, nem nos do Marimbo... No Calambau tudo ainda está pior...
Mostra-se tão desfavorecido, que só falta garantir a derrota seu partido “João-de-Barro”...
Diz isso e repete, cinco, seis vezes, enquanto eu vou remoendo comigo os meus insignes pesares de amor. Passada a ponte, separamo-nos. Juca Soares recebeu-me muito bem. A Alda é bonita.  Mas, tem olhos verdes... É clara demais, meio loura... Não se parece nada com Maria Irma... Não é Maria Irma!
Juca Soares também só fala da política: que tudo está rendo muito bem para os “Periquitos”. A vitória é certa...
O Governo dará apoio forte, vai mandar mais praças  para o destacamento... E eu fico convencido da verdade de tudo isso.
Pouco demorei, conquanto muitos fossem os agrados. E casa, Tio Emílio já me esperava, ansioso, via-se. Contei-lhe conversa com o adversário. Pergunta:
— Que foi que você disse a ele?
— Não me lembro... Ah, sim: acho que disse que o senhor estava um pouco desanimado,que talvez aceitasse um acordo. ; Fiz mal?
Tio Emilio avança, de exultante:
— Fez muito bem, isto mesmo é que sapo queria! Eles a vão pensar que é verdade, e vão amolecer um pouco... Estou desanimado, qual nada!... Mas você costurou certo. E agora que tudo está mesmo bom, pois se o Juca Futrica contou prosa é porque as coisas para ele estão ruins... Você me rendeu servição, meu sobrinho.
Oh, céus! Até a minha inocente ida ao Juca Soares foi explorada em favor das manobras políticas do meu tio... Corro Maria Irma, que, frente ao espelho grande, acertava o comprimento de um vestido grená, estendendo-lhe as mangas em asas de ave e prendendo a gola com o mento. Sorriu, estendeu-me a mão, dobrou com cuidado o vestido.
— Que tal, a Aldinha? perguntou.
— Que tal você e eu, Maria Irma?
— Um pouco tolos... Um pouco primos.
— Falo a sério, Maria Irma!
—  Por que não avisou?
— Por favor, um armistício... Quero parlamentar...
—  Guarda a bandeirinha branca. Vou servir café a você...
— Só depois.
— Então, senta e fuma...
— Escuta, Maria Irma: eu gosto de você... Eu te amo!
—Você pensa que gosta...
— Acredita que seja verdade. Por um momento, só...
— Fiz de conta. E depois?
— Então...
— Solta a minha mão!... Você já devia de me conhecer bem, para saber que eu não gosto disso.
—  Uma palavra, apenas, Maria Irma... Posso esperar?
— Não.
— Diga, Maria Irma, por favor!
— Não.
— Pelo menos, fica sabendo que eu adoro você, que...
—  Não sei...
— Então, devo ir-me embora?
— Sim... Vai...
— Vou, Maria Irma!
— Espera... Para onde você vai?
— Primeiro para as Três Barras, amanhã mesmo. De lá, á Vila, e ás Tabocas, onde tomarei o trem...
— Espera... Não vá ainda... Fica mais uns dias...
— Por quê, Maria Irma? Para quê?
—  É que... É que eu convidei Armanda para vir passar dias aqui, depois da eleição...
—Você é má, Maria Irma. — Não sou. Fica... Você vai gostar...
—  Que astúcia você tem na cabecinha, prima?
— Bem, é melhor que você vá. Você era capaz de pensar que é por minha causa que eu estou pedindo...
— Adeus, Maria Irma... Irma Maria...
—Tenho um retrato de Armanda... Você quer ver?
— Mostra ao Ramiro!
—Teimoso!
-—Adeus, Maria Irma!
— Adeus, trapalhão!

***

E agora? Agora, vou-me embora para as Três Barras, onde mora o meu tio Ludovico, que não tem filha bonita nenhuma e não cuida de política. Vou, amanhã mesmo!

***

A Tio Emilio, aí que as eleições estavam beirando por pouco, custou concordar com a minha partida; falou em ingratidão e amuou. Maria Irma foi clássica: não disse pau e nem pedra. E eu, confesso, quase chorei, no caminho. Mas estava em cima de um burro pardo, e, desse modo, chorar seria falta de pudor.
Nas Três Barras, o mundo era outro: muitos vaqueiros cantores; muitas violas; muitos passeios; muito sofri por causa de Maria Irma...
Pensava: será que agora, com a minha ausência, Maria Irma não estaria começando a gostar de mim? E penava com isso, que o amor, ao contrário de acontecer como a água em dois vasos estanques, deva gangorrar como pesos em conchas de balança. E desesperava, ao sentir que eu acumulara comigo tanto amor que estava inútil, sem ter onde pousar.
Mais sofri, todavia, porque lua havia, uma lua onde cabiam todos os devaneios e em que podia beber qualquer imaginação. Da varanda, eu espiava um pedaço, dado ao luar, de ar claro; as árvores ficavam tão quietas, que aquele campo parecia correr, como um vau de riacho raso, de transparência movente. As vacas, àquela hora, mugiam imenso, apartadas dos bezerros. Os dias me cansavam muito, mas eu não conseguia dormir. Pelas frinchas da janela, entrava o mato em insônia, com vozes que eu não entendia. E, às vezes, tarde da noite, ouvia, do curral, bruscos estrépitos — bufos, pisoteios, e um trafegar a esmo —
excursões do gado sonambúlico.
E eu pensava, sempre em Maria Irma.
Mas o único acontecimento mesmo acabrunhante foi produzido por um papagaio, geral e caduco, já revertido ao silêncio, que cochilava em seu poleiro, mas que, um dia, lembrando-se de outrora, entortou a cabeça, me olhou com um olho, e, esganiçado, cantou:
“Cadê Mariquinha?
Foi passiá... Entrou no balão
Virou fogo do á!...”
— Gagá idiota! Deixa de cantar bobagens!
— Fogo... Fogo!... Prrrr... Fogo!... Fogo do á!...
Mas, aí, a negrinha Carmelinda chegou e explicou:
— É por causa que essa-uma é a cantiga que a gente  e p’ra todos os papagaios... E é a derradeira que eles esquecem, quando já estão velhinhos...
Ri e deixei o purrutaco dormir. Melhorei.
E aí foi que tive notícia de que as eleições tinham corrido,  com estrondoso triunfo do partido “João-de-Barro”. E assim chegou também o dia em que apareceu nas Três Barras um camarada do Tio Emílio, trazendo duas cartas para mim.
Abri o primeiro envelope, com excessiva pressa: continha um recado, à máquina, do meu tio, celebrando a vitória e insistindo para que eu  voltasse. Aquela folha de papel tinha passado, pelas mãos, pelos dedos morenos de Maria Irma!
Mas, havia também o outro envelope, e eu abri, com  preguiça, o outro envelope. Céus!
Santana, outra vez! ... Somente isto:
“Caríssimo, — analisando a posição em que interrompemos aquela Zuckertort-Réti,  na viagem a cavalo, verifiquei que o jogo não estava perdido para mim. Ao contrário! Junto o diagrama, porque não confio muito na sua memória, desculpe. Mas, veja o avanço do cavalo preto a 5C, e, em seguida, B3D, e o outro bispo batendo a grande diagonal, e...veja, oh, ajuizado moço Telêmaco, na quarta jogada, o tremendo ataque frontal dos peões negros, contra o roque branco. Indefendível! Xeque-mate!
Continuemos, por correspondência. Escreva para Pará -de-Minas.
Seu,
SANTANA.”
Pulei do banco, e gritei de alegria. Os novilhos, que enchiam o curral esperando a marcação, pareceram-me um exército, aguardando ordens minhas para arremeterem em fileiras. O dia ficou, de repente, o mais bonito e bendito. Gritei mesmo:
— Saltem um cálice da branquinha potabilíssima de Januária que está com um naco de umburana macerando no fundo da garrafa!... E cavalo arreado, já, já, para eu voltar para o Saco-do-Sumidouro... Desistir, nem de ser idiota não convém! Viva Santana, com os seus peões! Viva o xeque-do-pastor! Viva qual quer coisa!... Volto! Vou lá.
E não adiantou a insistência do tio Ludovico:
—Amanhã cedo você vai... Espera ao menos a ferra dos garrotes, que é coisa bonita, de que você vai gostar...
E nem os sábios conselhos do Viriato, vaqueiro campeão da “derruba do boi pela seda” e mateiro meu confidente em assuntos de amor:
— O senhor não deve de ir, porque torna a ficar gostando... Isso de querer-bem da gente é que nem avenca-peluda, que murcha e, depois de tempo, tendo água outra vez, fica verde... E que nem galho grosso de timbaúba, que está seco, e, a gente fincando p’ra fazer cerca, brota logo e põe raiz!...
— Nada disso, Viriato! Eu tenho opinião. Não cedo!... Mas quero que ela saiba que eu não gosto dela mais... expliquei, já afivelando as esporas.
E Viriato, curvando-se para me ajudar, abanou a cabeça e de clamou:
— Flor de angico-verdadeiro dura seis meses no pé...
Mas não era curta a viagem das Três Barras ao Saco-do-Sumidouro,  tanto que houve tempo para pensar e sentir. Amplos Campos navegantes; depois, o mato montano, onde pia o zabelê. Por aí, tive cansaço e vergonha de tudo o que antes eu ra e fizera, e foram notáveis os meus pensamentos. O pio do zabelê é escandido e gemido. A estrada do amor, a gente já está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino.
E a casa do amor — em cuja porta não se chama e não se espera —  fica um pouco mais adiante.
— Éco! Éco! - gritavam os tucanos verdes.
— Óco! Óco! — ralhavam os tucano-açus.

***

Cheguei numa tarde assaz bonita e quente, porque era fim de janeiro com veranico. Meu tio estava na varanda, deitado na rede, com um  monte de cartas e telegramas ao alcance da mão. Achei-o um pouco abatido. Mais magro.No alto da parede, os marimbondos tinham crescido novos cortiços oblongos. E as rosas amarelas forjam.
Tio Emilio me reteve abraçado, falando-me ao ouvido, com voz grossa e ronronante:
— Então, hein! Que arraso! Agora não há mais periquito para tomar casa que joão-de-barro fez!...
E, desprendendo-me, por fim:
— Olha o que o Presidente do Estado me mandou: que telegrama! Não pode haver mais periquito. É ali! Tretou, relou, tijolo nas costas!...
Mas, justamente agora, que se afastara um pouco, era que Tio Emílio abaixava a voz:
— O pior foi que eu tive um prejuízo grande... Gastei para mais de uns oitenta contos... Um estrago!... Estou pensando em fazer um acordo na política, em desde que eu fique sendo o chefe...
 E, numa onda brusca de carinho,Tio Emilio abraçou-me outra vez.
— Onde está Maria Irma? — perguntei. Estava no jardim, e tinha mesmo de estar no jardim. Mas não estava só.
Ruborizou-Se. Ofegou. E apresentou-me à outra.
— Meu primo... Armanda...
Armanda tinha uma expressão severa, e foi muito inóspito o seu olhar. Quase uma zanga.
— Com cada um de vocês já falei muito do outro... —acrescentou Maria Irma.
Hesitei. Armanda recuara um passo, e fingiu olhar o jasmineiro. Murmurei:
—  Então, Maria Irma, surpreendi você com a minha volta...
— Fico alegre...
— De verdade?
—  Não começa outra vez. Você não compreende...
Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos.
—  Vou ver, papai chamou... Me esperem... explicou Maria Irma, abrindo vôo.
—  Prefiro caminhar. Quer? perguntou-me Armanda.
Quis. Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim com a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.
— Você está querendo tomar-me o pêlo?!
— Que é isso, Armanda?
— Nada. Vamos!
Urna lavadeira cantava, lá na beira do rego:
“De madrugada,
quando a lua se escondia...
o sol raiava
 na janela de Maria...”
Vinha um odor duro, das flores carminadas. Os aloendros. em fila, nos separavam do mundo. Pensamentos me agitavam; Queria...
—Você gosta de Maria Irma?
— Não...
— De quem?
— De você... Sempre gostei. Sempre! Antes de saber você existia...
— É engraçado...
—  É verdade. Não... Não é isso...
Armanda jogou fora o botão de bogari, e entrecruzou os dedos. E disse:
— É com você que eu vou casar.
—  Comigo!?...
— Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é uso?

***

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima, Maria Irma com o moço Ramiro Gouveia, dos Gouveias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Minha Gente - Parte III

Entre 1938 e 1951, Guimarães Rosa trabalha como diplomata, principalmente na Alemanha, onde ajudou os  judeus durante a guerra, Colômbia e Paris.
Em 1962, após anos de não publicações, onde seu prestígio como escritor crescia e a publicação de Grandes Sertões: Veredas, consegue entrar na Academia Brasileira de Letras.
Seu estilo, marcado pelo regionalismo, a criação de novas palavras de cunho popular misturado ao erudito, alcançou a esfera internacional e criou um estilo como que novo na literatura brasileira, sendo o romancista mais importante da 3a geração do modernismo brasileiro.
Sua obra foi bastante vasta, contendo principalmente coletâneas de contos, todos sobre o povo e a terra.
Guimarães Rosa morreu em 19 de novembro de 1967, 3 dias depois de ter tomado oficialmente posse de sua cadeira entre os imortais.

Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte III


Horrível! Horrível o que hoje aconteceu. E quem convidou fui eu! Bento Porfirio bem que não queria ir. Eu era quem estava Com saudade dos estranhos sussurros do poço. Porque todos os córregos aqui são misteriosos —  somem-se solo adentro, de repente, em fendas de calcário, viajando, ora léguas, nos leitos subterrâneos, e apontando, muito adiante, num arroto Ou numa cascata de rasgão. Mas o mais enigmático de todos é este ribeirão, que às vezes sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado para minguar, de
pronto, menos de uma hora depois. Há, contínuo, aqui ou acolá, um gluglu, um chupão líquido, água rolando n’água; lá embaixo, nas pedras, a corredeira se apressa ou amaina; mas o som nunca é o mesmo de dois instantes atrás.
Os mangues da outra margem jogam folhas vermelhas na corrente. Descem como canoinhas. Param um momento ali naquele remanso, perto das frutinhas pretas da tarumã.
Olhos de Maria Irma... Bobagem, eu vou gostar mais de olhos castanhos, de olhos verdes... Suecas, húngaras,  dinamarquesas... polonesas de olhos pardos...
O ribeirão mudou de tom. Você ouviu, Bento? Ronca. Está se enchendo outra vez, sem turvar a água... De repente, o sabiá! Veio molhar o pio no poço, que é um bom ressoador. E quer passar a sua tristeza para a gente. Mas, agora, já sabemos nos defender. Podemos desmerecê-lo, quebrar-lhe a potência de acumulador de mágoas e dor de saudades. E, sem nenhuma combinação:
Eu disse:
— Gênero turdus... Um flavipes ou rufiventris...
E Bento berrou:
— Ô bicho enjoado! Vai chamar chuva noutra parte!.. A modo e coisa que está botando ovoe veio comer minhoca de beira de córgo... Cruz!
E cantou, alto, para abafar os lamentos do outro:
“Ouvi um sabiá cantando
 na beira do ribeirão...
Ô pássaro que canta triste!
Não me traz consolação...”
Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque  a cantiga do Bento ainda era mais melancolizante. Agora é o córrego que parece triste. Trocou outra vez de toada... Deve ter uma lavadeira lavando roupa e chorando, lá longe, lá longe, lá para trás dos morros frios, onde há outras roças, outra gente, outro sabiá...
Afinal, quem é que é burro?! Que foi que nós viemos fazer aqui?... Os cigarros seacabaram. Vamos voltar para casa, Bento Porfírio?
— Já, já... É só o tempinho d’eu pegar aquele dourado dançante, que prancheou ali agorinha mesmo... Queixo esperto! Tabarão! Já comeu três iscas... Mas hoje é o dia dele! Cada qual tem o seu dia... E peixe é bicho besta, que morre pela boca...
Bento Porfírio volta a falar na amante: o marido, o Alexandre, não sabe que está sendo enganado... Mas aquilo não é pouca-vergonha, não: é amor sério... A de-Lourdes não tolera o marido, não dorme com ele, não beija, nem nada... Estão combinando fugir juntos... Braços morenos... (Maria Irma!)... lenço vermelho na cabeça... metade... agaranto... anto...ão... eu... é...
Não escuto mais. Estou namorando aquela praiazinha na sombra. Três palmos de areia molhada... Um mundo!... Que é aquilo? Uma concha de molusco. Uma valva lisa, quase vegetal. Carbonífero... Siluriano.,. Trilobitas... Poesia... Mas este é um bicho vivo, uma itã. No córrego tem muitos iguais...
Bento Porfírio suspira fundo. Continua falando alto:
—  ...estava de branco.., na vinda p’ra cá bateu a mão, saudando... O Alexandre é um bobo a gente vai ser feliz... ...de-Lourdes...  ... p’ra longe...  ... nem não há...Não há... Não há... Não ouço mais o Bento. Há qualquer coisa estranha aqui... Há mais alguém aqui! Alguém está escutando! Não tenho coragem para voltar o rosto.
Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes,descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensangüentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.
Agora me acalmo. Não me fizeram nada. Só estou é com a roupa molhada, do espirrão da água. Também, aqui não é de; uso dar-se voz de prisão... E não posso pedir ao assassino que me ajude a tirar o Bento do poço. Corro para casa. No caminho, recupero parte da compostura.
Tio Emílio acabava de chegar da vila, e, sentado no banco do alpendre, labutava para descalçar as botas.
Fui falando, esbaforido, insofrido. Mas meu tio, cortando o jacto das minhas informações, disse:
— Espera um pouco.
Trabucou mais dois minutos. Afinal, conseguiu desfazer-se das botas e calçou os chinelos.
Perguntou:
— Você tem certeza de que o Bento já está morto?
— Mortíssimo. Morreu em flagrante...
—Ah!...
E levantou-se calmamente, e calmamente pegou a andar na varanda, no vaivém de sempre, pensando, pensando. Nem me via. Sentei-me no banco, com raiva de tanta fleuma e querendo ver o que ele iria resolver. Por fim, parou e rosnou.
— Como é que o Xandrão Cabaça, tão sem idéia, foi descobrir a história lá deles? Boi sonso, marrada certa!
Chamou o Norberto, o capataz, e mandou que fosse ver o corpo.  E que corresse alguém ao arraial, para chamar o subdelegado.
O capataz saiu, convocando os camaradas. Meu tio se chegou  para o parapeito, e tirou o fumo mais o canivete. Não me contive: — Mas,Tio Emilio, o senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim? Não vai mandar, depressa, gente atrás do Alexandre, para
ver se o prendem?
Tio Emílio, alisando a sua palha, e com o sorriso que um sábio teria para uma criança, olhou-me, e disse:
— Para os mortos... sepultura! Para os vivos.., escapula!
Humilhei meus pendões. Calei-me. Meu tio esfregava nas palmas das mãos o fumo picado. Enrolou o cigarro. De súbito, bateu na testa e pulou:
- Não é que eu não sei onde é que eu estava mesmo com a cabeça?! Ô Gervásio, corre aqui!... Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco...
Tirou dinheiro do bolso e entregou ao mulato. Ajunta, depressa, uns homens, para campearem o Cabaça. Espera aí... Ele para o lado da vila não ia, com medo dos soldados... Para o Marimbo, também não, pois é onde que mo ram todos os parentes dele, e ele sabe que a gente havia de querer ir procurar lá... O Calambau era o melhor lugar para um se esconder, mas o Xandrão Cabaça é burro, não acertava de ter pensado nisso, não. Para os lados do Piau Não, acho que também não ia, porque no Piau vive o irmão do Bento... Nem para as Porteirinhas... Nem para os Tucanos... Ele foi mas é pa ra o Bagre, com tenção de, de lá, esquipar para o sertão! Vocês cacem de ir atrás dele, passando pelo atalho das Moreiras. E segurar e trazer. Mas voltem por dentro, pelo caminho do mato, que é para ninguém ver e nem ficar sabendo... Levem o Cabaça para a tapera do Retiro. Expliquem bem a ele, que ele vai ficai lá garantido, escondido das autoridades, até a gente arrumar as coisas, os jurados e tal.., O Cabaça é muito jumento e ignorante, e é capaz de não querer acreditar; se fizer barulho, vocês sojiguem, nem que seja peado e no tronco,.. E tio Emílio se sentou na cadeira-de-pano. Acendeu o cigarro. Tirou uma fumaça e espiou para ela. De repente, se mobilizou em pé, com grande susto para mim, e gritou pelo Gervásio, que já ia longe. Falou só:
— Vão no Calambau! Foi para lá que o Cabaça foi.
E sentou-se outra vez, ora descansado, murmurando:
— É isso... Capivara, a primeira vez que bate um trilho, passa com jeito. Depois, vai-se acostumando com o caminho, e pega a relaxar... Foi assim que o Bento morreu. Agora a gente tem é de ver os jurados, para o júri do leso do Xandrão Cabaça...
Saí para os fundos da casa. Maria Irma estava dando água às latas de plantas: jurujuba, dinheiro-em-penca e beicinho-de-sinhá. Narrei-lhe a tragédia. Minha prima levantou os supercílios, e seus olhos formosos se arredondaram, descobrindo o branco por cima da íris; e foi apenas com isso que revelou algum espanto.
— Coitadinha da Bilica... e da mulher do Alexandre... — disse. — Por causa da falta de vergonha de um, e da do outro, quem vai sofrer agora são as duas pobrezinhas...
Pororoca! Será que ninguém aqui pensa como eu?!...
Quero ir dormir, sem jantar, sem conversa de sede e siso.

***


Voltou a chover, O dia inteiro. Caiu um raio, na porteira do curral grande. Rega miúda, aborrecida. Só às vezes, sem aviso, despenca um maço d’água mal amarrada, ou zoa uma chuva rajada flechando o chão em feixe diagonal. Depois, estia devagar: já se escutam as goteiras. Ao pé da minha janela, a enxurrada desce para o bueiro, numa efêmera cascata suja, com inconveniências de cochicho e bochecho. E, quase que o dia inteiro, um sapo sentado no barro, se perguntava como foi feito o mundo.
Passei todo o tempo no quarto, lendo, pensando. Imaginei mesmo um romance, do qual Bento Porfírio, bem vivo, seria o herói.
Mas, agora, estou com remorso, porque não acompanhei o enterro; malícia dum momento, o Bento indo por essas estradas, estúpidas de lama. Chovia, na verdade, porém, a chuva não impediu Maria Irma de sair, para visitar e confortar a viúva e a outra. Meu tio também se mostrou assaz generoso para com as duas. Minha gente é boa.
Houve o arco-da-velha no céu, num abrir de sol, mostrando as cores, com um pilar no mato e o outro no monte.
Mas, cataplasma! Já começa a chover outra vez.

***

Chove. Chuva. Moles massas. Tudo macio e escorregoso. Com o que proferiu Gotama Buddha, o pastor dos insones, sob outras bananeiras e mangueiras outras, longínquas:
“Aprende do rolar dos rios,
dos regatos monteses, da queda das cascatas:
tagarelante, ondeia o seu caudal —
só o oceano é silêncio.”
Mas, do mudo fundo, despontam formas, se alongam. Anfitrites dormidas, na concha da minha mão, e anadiômenas a florirem da espuma.
Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emilio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais de uma semana. A varanda era uma praia de ilha, ao mar da chuva. Meu espírito fumaceou, por ares de minha só posse — e fui, por inglas de Inglaterras, e marcas de Dinamarcas, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Dária, da Circássia; Ragna e Aase; e Gúdrun, a de olhos cor dos fiordes; e Vivian, violeta; e Érika, sílfide loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Viadislava, císnea e junoniana; e a
princesinha Berengária, que vinha, sutil, ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos...
Quem veio foi Maria Irma, num vestido azul-marinho, tanto corada e risonha.
— Sonhei. Sonhei demais, prima... Que é do tio?
— Foi dormir na cama, que é lugar mais quente.
— E você?...
— Queria perguntar uma coisa...
— Pergunte, Maria Irma. — Não. Não sou curiosa.
— Então, eu sei o que é...
— Então?
— É a respeito... Bem, é sobre. . . Você quer saber se eu deixei algum amor, a esperar por mim?
— Se deixou, ou não, não me interessa...
— Então, por que você quis perguntar, prima?
— E por que foi que você adivinhou a pergunta, primo?

***

Manhã maravilha. Muito cedo ainda, depois de gritos de galos e berros de bezerros, ouvi alguém cantar. Fui para a varanda, onde adensavam o ar os perfumes mais próximos, de vegetais e couros vivos. Sob a roseira, de rosas carnudas e amarelas, encontrei Maria Irma. Perguntei se era ela a dona de tão lindo timbre. Respondeu-me:
— Que idéia! Se nem para falar direito eu não tenho voz...
— Diga, Maria Irma, você pensou em mim?
— Não tenho feito outra coisa.
— Então...
—-Vamos tomar leite novo?
— Vamos!
.................................................................................
—  E agora?
—Vamos tomar café quente?
—Vamos e venhamos...
...................................................................................
— Mas, Maria Irma...
— Vamos ver se a chuva estragou a horta?
Havia uma cachoeira no rego, com a bica de bambu para o tubo de borracha. Experimentei regar: uma delícia! Com um dedo, interceptava o jacto, esparzindo-o na trouxa verde meio aberta dos repolhos, nas flácidas couves oleosas, nos tufos arrepiados dos carurus, nos quebradiços tomateiros, nos cachos da couve-flor, granulosos, e nas folhas cloríneas, verdeaquarela, das alfaces, que davam um ruído gostoso de borrifo.
Maria Irma, ao meu lado, pôs-me a mão no braço. Do  cabelo preto, ondulado, soltou-se uma madeixa, que lhe rolou para o rosto.
Eu apertava com força o tubo da mangueira, e o jorro, numa trajetória triunfal e libertada, ia golpear os recessos das plantinhas distantes. De repente, notei que estava com um pensamento mau: por que não namoraria a minha prima? Que adoráveis não seriam os seus beijos... E as mãos?!... Ter entre minhas aquelas mãos morenas, um pouquinho longas, talvez em desacordo com a delicadeza do conjunto, mas que me atraíam perdidamente...
Acariciar os seus braços bronzeados... Por que não?...
Súbito, notei que Maria Irma se ruborizava. E arrebatou a borracha, com rudeza quase:
— Não faz isso, que você está tirando a terra toda de redor dos pés de couve!
E, com um meio sorriso, querendo atenuar a repentina aspereza:
— Além disso, tem chovido, e ainda não é preciso regar horta hoje...
E, afinal, com um sorriso todo:
—....e, depois, faz mal molhar as plantas com sol quente. Vamos ver as galinhas?
— Pois vamos ver as galinhas, Maria Irma.
E acompanhei-a, namorando-lhe os tornozelos e o donairoso andar de digitígrado.
Pelo rego desciam bolas de lã sulfurina: eram os patinhos novos, que decerto tinham matado o tempo, dentro dos ovos, estudando a teoria da natação. E, no pátio, um turbilhão de asa e de bicos revoluteava e se embaralhava, rodeando a preta, que jogava os últimos punhados de milho, rolando e com a língua:
— Prrr-tic-tic-tic!
Um gordo galo pedrês, parecendo pintado de fresco com desenhos de labirinto de almanaque, sultaneava, dirigindo preferências a uma galinha ainda mais carijó e mais gorda, vestida de fichas de impressão digital. E veio de lá, ciumento e briguento, outro galo, esse branco, com chanfraduras e pontas na crista caída de lado. Barulho. E então a galinha choca, com cloqueios e passos graves, chamou os pintinhos para longe dali. E havia suras, transilvânias, nanicas, topetudas, calçudas; e guinés convexas, aperuadas; e peruas acucadas; e um peru bronze-e-brasa, de brincos, carúnculas, boné e guardanapo, todo paramentado de framboesas; e patos, esparramados, marrecos mascotes e pombas de casa.
Mas, de supetão, uma espécie de frango esquisito, meio carijó,  meio marrom, pulou no chão do terreiro e correu atrás da garnisé branquinha, que, espaventada, fugiu. O galo pedrês investiu, de porrete. Empavesado e batendo o monco, o peru grugulejou. A galinha choca saltou à frente das suas treze familiazinhas. E, ai, por causa do bico adunco, da extrema elegância e do exagero das garras, notei que o tal frango era mesmo um gavião.
Não fugiu: deitou-se de costas, apoiado na cauda do brada, e estendeu as patas, em guarda, grasnando ameaças com muitos erres. Para assustá-lo, o galo separou as penas do pescoço das do corpo, fazendo uma garbosa gola; avançou e saltou, como um combatente malaio, e lascou duas cacetadas, de sanco e esporão. Aí o gavião fez mais barulho, com o que o galo retro cedeu. E o gavião aproveitou a folga para voar para a cerca, enquanto o peru grugulejava outra vez, com vários engasgos.
—  Nunca pensei que um gavião pudesse ser tão covarde e idiota .. —  eu disse.
Maria Irma riu. —  Mas este não é gavião do campo! É manso. E dos meninos do Norberto... Vem aqui no
galinheiro, só porque gosta de confusão e algazarra. Nem come pinto, corre de qualquer galinha...
— Claro! Gavião civilizado...
— U’lalá... Perdeu duas penas..
O sorriso de Maria Irma era quase irônico, Não me zanguei mas também não gostei.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Minha Gente - Parte II


João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo em 1908. Desde muito cedo, estudou e teve grande aptidão para línguas. Começou a aprender francês sozinho e depois se transformou num poliglota. Segundo ele mesmo disse:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Na faculdade, formou-se em Medicina e foi médico de uma pequena cidadezinha e depois do exército. Mas é somente em 1934 que um amigo lhe mostra a verdadeira vocação e ele passa em 2o lugar no exame do Itamaraty. É na nova profissão que Guimarães Rosa se destaca, além de suas obras literárias, que foram sua principal "alavanca à imortalidade".

Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte II



Já estou aqui há dois dias. Já revi tudo: pastos, algodão, pastos,  milho, pastos, cana, pastos, pastos. E, dos chiqueiros às turbinas, do pomar ao engenho, tudo encontro transformado e melhorado. Mas o mais transformado e melhorado é mesmo o meu grande e bondoso tio Emílio do Nascimento, que assina “do Nascimento” porque nasceu em dia de Natal. De seis anos atrás, lembrava-me do tio, e péssima figura fazia ele na minha recordação: mole para tudo, desajeitado, como um corujão caído de oco do pau em dia claro, ou um tatu-peba passeando em terreiro de cimento.
A venda do bezerro, por exemplo, transação árdua e langorosa, que eu tivera o infortúnio de testemunhar. Havia um novilho em ponto de ser amansado para carro, e meu tio Emílio, que queria vender o novilho, e ainda outro fazendeiro, tio de qualquer outra pessoa, que desejava e precisava de comprar o novilho duas vezes aludido. E, pois, a coisa começou de  manhã. O tal outro fazendeiro amigo chegou e disse que “ia passando, de caminho para o arraial, e não quis deixar de fazer uma visitinha,  para perguntar pela saúde de todos”... Sentaram-se os dois, no banco da varanda.
Tio Emilio sabia que o homem tinha vindo expresso para entabular negócio. E, como o novilho era mesmo bonito, ele saiu um pouco, “para encomendar um cafezinho lá dentro”.., e ordenou que campeassem o boieco e o trouxessem, discretamente, junto com outros, para o curral. Em seguida, voltou a atender o “visitante”. E, mui molemente, tal como sói fazer a natureza, levou o assunto para os touros, e dos touros para as vacas, e das vacas aos bezerros, e dos bezerros aos garraios. Aí, “por falar em novilhos”, se lembrou de que estava com falta dos ditos: tinha alguns, mas precisava de reformar as juntas dos carros... E até sentia pena, porque os poucos que possuía eram muito bem enraçados, primeira cruza de zebu gyr, cada qual melhor para reprodutor... Mentira pura, porquanto ele tinha mas era um excesso de bezerros curraleiros, tão vagabundos quão abundantes.
Aí, o outro contramentiu, dizendo que, felizmente, na ocasião, não tinha falta de bezerros. Eu saí, andei, virei, mexi, e, quando voltei, duas  horas de pois, as negociações estavam quase que no mesmo pé em que eu as deixara.
Depois do almoço, idem. Pouco antes do jantar, ainda. Iam e vinham, na conversa mole, com intervalos de silêncio tabaqueado e diversões estratégicas por temas mui outros. De vez em quando, Tio Emílio se lembrava de perguntar por mais um parente longínquo do seu amigo, e o seu amigo perguntava por um célebre cavalo de Tio Emilio, falecido fazia três anos. E ambos corriam do assunto e voltavam ao assunto, e era bem como na estória da onça e do veado, que, alternadamente e com muita confiança em Deus, construíram uma casa, ignorando-se mutuamente a colaboração.
E o homem foi embora. E meu tio visitou o homem, dali a dois dias. E o homem voltou à fazenda do meu tio. E, no fim do mês, o vitelo foi  vendido e comprado, sendo que, por pouco mais, teria chegado a velho boi.
Mas, agora, há-de-o! Quem te viu e quem te vê... Agora Tio Emílio é outro: rejuvenescido, transfigurado, de andar e olhar  bem postos e bem sustentados, se bem que sempre caimão, fechadão. Logo depois do primeiro abraço, fiquei sabendo por quê: Tio Emílio está, em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política.
Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (n° 1), ao mesmo tempo que apóia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (n°2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município n° 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (n° 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio,
resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.
Agora, o que mais depressa aprendi foram os nomes dos diversos partidos. Aqui, temos:João-de-barro — que faz a casa —  e Periquito —  que se apodera da casa, no caso em apreço o Governo municipal. No município n° 2, hostilizam-se: Braúnas — porque o respectivo chefe é um negociante de pele assaz pigmentada — e  Sucupiras — por mera antinomia vegetal. No lugar, zumbem: Marimbondos versus Besouros. E, no município nº 3,  há Soca-Fogo, Treme- Terra e Rompe-Racha —  intitulações terroríferas, com que cada um pretende intimidar os dois outros.
Mas, aqui neste nosso feudo, grande é o prestígio do meu grande Tio Emílio. Seu agrupamento domina a zona das fazendas de  gado, e manda na metade da vila. Só o arraial é que ainda está indeciso, porque obedece ao médico, um doutor moço e solteiro,  pessoa portanto sem nenhuma urgência, que tarda a se definir.
Tio Emilio não cessa de receber gente. Expede portadores, e, até fora d’horas na noite, costumam chegar emissários, O número de camaradas e agregados aumentou: na fazenda, atualmente, não se recusa trabalho, nem dinheiro, nem nada, a ninguém. Há conciliábulos, longas conversas com sujeitos da vila, passeando na varanda. E dai eu esperar notáveis coisas para o de Santana costuma dizer: — Raspe-se um pouco qualquer
mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político...
Para mim, não é bem isso. Tanto mais que ninguém raspou Tio Emilio. Mas, acontece que ele sempre gostou de caçar e de pescar. E, de tanto ver a paca apontar da espumarada do poço, bigoduda e ensaboada como um chinês em cadeira de barbeiro... E de se emocionar com a ascensão esplêndida da perdiz, levantada pelo perdigueiro, indo ar acima, quase numa reta, estridulante e volumosa, para se encastelar... E de descair o anzol iscado, e ficar caladinho, esperando o arranco irado da traíra ou os puxões pesados do bagre... Bem, afinal, pode ser que seja Santana quem tenha razão.
Tio Emílio tem duas filhas. A mais velha, Helena, está casada e não mora aqui. A outra, Maria Irma, não deixa de ser bastante bonita. Em outros tempos, fomos namorados. Desta vez me recebeu com ar de desconfiança. Mas é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria pessoa da graça. Graciosíssima. O perfil é assim meio romano: camafeu em cornalina... Depois, cintura fina, abrangível; corpo triangular de princesinha egípcia... Mas a sua maior beleza está nos olhos: olhos grandes pretíssimos, de fenda ampla e um tanto oblíqua, e electromagnéticos rasgados quasemente até às têmporas, um
infinitesimalzinho irregulares; lindos! Tão lindos, que só podem ser os tais olhos Ásia-naAmérica de uma pernambucana — pelo menos de uma filha de pernambucanos, quando na de meia ascendência chegada do Recife...
Não entendi, e indaguei do Tio Emilio. Não, todos os  avós de Maria Irma são rigorosos mineiros, de ontem e de anteontem, da Monarquia, das Sesmarias. Por igual, não me explico o fato de a minha deliciosa priminha, sendo assim tão “tão”, continuar solteira... Bem, preciso de levar em conta que ela passou alguns anos no internato, de onde veio há apenas ano e meio, quando a minha santa Tia Eulália teve chegado o seu dia de morrer. Mesmo assim, sou capaz de jurar que Maria Irma já recusou mais de um pretendente. E quase chego a sentir pena por esses entes infelizes.

*** 

Tio Emílio pediu-me que redigisse um telegrama ao Secretário do Interior, solicitando a substituição do comandante do destacamento policial da vila, que, por sinal, já foi cambiado duas vezes, nestes seis meses derradeiros. Porque, lá na Capital, sabem montar à cossaca, em dois ginetes, e as duas facções são atendidas rotativa e relativamente. Enquanto isso, o tempo passa, o pau vai e vem, e folgam os filhos da sabedoria. Mas, às vezes, meu tio bate com o rebenque na bota, e fala em “compressão e  suborno”; depois, suspira e comenta a degenerescência dos usos e a sua necessária regeneração.
Mal meu tio saiu, e Maria Irma aparecia. Veio vindo, com o ondular de pombo e o deslizar de bailarina, porque o dorso alto dos seus pezinhos é uma das dez mil belezas de Maria Irma.
Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, mui maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: —  priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...
Mas, parece que eu deixei transparecer entusiasmo excessivo, porque Maria Irma, prestigiando o encanto radioativo dos olhos, com uma inclinação lateral da cabecinha, alteou a voz, para dizer que está quase noiva.
— Está mesmo? É sim? De quem?
—  Não. Não sei. E depois? — e Maria Irma riu, com rimas claras.
— É ou não é, Maria Irma? Não mude de assunto...
—  E depois? E depois? E depois?...
Depois, parece que eu fiquei um pouco decepcionado, até à hora do jantar. E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais, que, para demarcar-lhes a pupila da íris, só o deus dos muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore preto, ou o gavião indaié, que, ao lusco-fusco e em vôo beira nu vens, localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada.
Estará ela mesmo comprometida?
Ainda bem... Ainda bem. Não vim aqui para a roça para amar ninguém.

*** 

Minha prima costurava no seu quarto. Tio Emílio fora à vila. Eu não quis ir. Também, não temos cerimônias. Choveu, com sossego, molemente; mas, de tarde, deu uma estiada firme, de mostrar um mundo lindo. Bento Porfirio me convidou para pescar. Fui. O carrego, saindo da ipueira, é um rego fino e reto, dilatado a e ali em poços escuros, quase redondos, com o mato clássico a orlar-lhe as margens: de cá de longe, do alto, do ponto onde cavamos chão procurando minhocas para isca, víamos águas e as frondes, justinho como um ramal de grimpa de jaboticabeira, com frutas maduras enfiadas em série comprida.
Os poços grandes são apenas três: o de cima serve de piscina para os camaradas; no do meio, de água limosa, mora um jacaré ermitão, de vida profunda, que deve ser verde e talvez nem exista; o último, aonde vamos, é o poção. Ali, há uma gameleira, digna de druidas e bardos, e, na sa água, passante, correm girinos,
que comem larvas de mosquitos, piabas taludas, que  devem comer os girinos, timburés ruivos, que comem muitas piabinhas, e trairas e dourado que brigam para poder comer tudo quanto é filhote de timburé. Boa sombra e bom pesqueiro. Descemos para lá, colhendo goiabas bichadas, pisando o capim com cautela — para o bote de algum “bicho mau sem pernas” —  e erguendo as varas, com jeito, para livrar os anzóis da ramaria baixa.
Bento Porfirio é um pescador diferente: conversa o tempo todo, sem receio de assustar os peixes. Tagarela de caniço e, punho, e talvez tenha para isso poderosas razões. E tem mesmo. Está amando. Uma paixão da brava, isto é: da comum. coisa muito séria, porque é uma mulher casada, e Bento Porfírio também é casado, com outra, já se vê. A água vem ao poção por um túnel de verdura. Há um tronco velho, servindo de banco. Mas Bento Porfírio prefere sentar-se na raiz grossa da gameleira.
— Pode falar nela, Bento.
— P’ra quê?... Essas artes a gente guarda... “Quem fala muito, dá bom-dia a cavalo”!...
Sabia: se o interpelo, susta logo as confidências. Mas, daí a minutos — mudei de assunto — ele vai falando, falando, sempre as mesmas coisas. E eu já estou cansado de saber que ela é boazínha, botininha, moreninha, engraçadinha, toda assim-assim, bisuim....
Bento Porfirio examina a chumbada, isca o anzolão de dourado, liberta a linha e dá de vara, açoitando a água com violência, “pra chamar a diabada desses peixes!”... Faço o mesmo, com o anzol pequeno, e Bento fica com um meio-riso, me espiando de esconso. Já sei: aqui eu não pesco é sobra nenhuma; as piabas não vir porque, neste recôncavo escuro, sem correnteza, deve morar, numa loca, debaixo do tronco podre, uma traira feroz. Como bom capiau, Bento Porfirio acha que ainda é cedo para me avisar. Guarda o pulo-de-gato. Mas não me importo. As linhas se estiram, levadas. Passam águas. Passa o tempo.
A história de Bento Porfirio é triste, e ele põe toda a culpa no “maldito vício” de pescar. No Pau Preto, nunca que acontece nada; mas, um dia, o Agripino, bom parente, convidou:
—  Vamos ao arraial, para as missões, que é para você ficar conhecendo a minha filha, a de-Lourdes... Estou querendo ter vontade de arranjar o casamento de vocês dois...
E Bento Porfírio tratou que ia, mas roeu a corda, porque uma turma grande estava de saída para uma pescaria no Tou-no-Tombo, com mulher-da-vida, comeria, sanfona até.
Companheirada certa. Não resistiu: se amadrinhou com eles, e ficaram Uma semana por lá... O Agripino, rabicundo, foi sozinho para o arraial. Ô tristeza!
Oh, tristeza! Da gameleira ou do ingazeiro, desce um canto, de repente, triste, triste, que faz dó. E um sabiá. Tem quatro notas, sempre no mesmo, porque só ao fim da página é que ele dobra o pio, Quatro notas, em menor, a segunda e a última molhadas. Romântico.
Bento Porfírio se inquieta:
— Eu não gosto desse passarinho! ... Não gosto de violão... De nada que põe saudades na gente.
Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio,  já caiu aqui perto de nós. Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço, aonde nunca irei, more alguém que está à minha espera... E que jamais verei, jamais...
Bento ficou sério. Até mais simpático. E suspirou:
— Estou me alembrando da minha mãe... Morreu longe daqui. Ai, minha mãezinha, dando de comer às galinhas, na porta da cafua de beira da estrada, lá no Aporá!...
— E o resto da historia, Bento?
— Pois o resto é que é o mais triste, o pior...
Quando Bento Porfírio veio a conhecer a prima de-Lourdes ela já estava casada com o Alexandre. Foi só ver e ficar gostando. E ela também...
— Ai, que mundo triste é este, que a gente está mesmo nele, sé p’ra mor de errar!... E, quando a gente quer concertar, ainda erra mais... Maldito vício de gostar de pescaria!
O “concerto” do Bento foi casar, por sua vez, com a Bilica, só por pirraça e falta do que fazer. Mas a Bilica agora para nada conta. Tento admoestá-lo:
— Mas, você, casado como é, pai de família, não tem vergonha de andar com outra mulher?
— Uê! Pois então burro maniatado não pasta?!


*** 

Na hora do jantar, Maria Irma foi muito amável. Depois do doce — compota de mangabas de-vez, em verde calda crassa —fitou-me com um olhar novo, quase prometedor. Fiquei sério. Tomei meu café e vim fumar na varanda. Havia um recadeiro, de roupa amarela, com três cartas no bolso, disposto a esperar o regresso do meu tio. Puxei conversa. E falamos, — sobre porcos, e preços, e toucinhos, e formigas, formigueiros, formicidas, — até o escuro entrar e engrossar. Só então, fui dizer boa- noite  a Maria Irma. Esquivo e seco. E, inesperadamente, ela me mirou, agora com um sorriso sério, dizendo:
— Você faz tudo como devia fazer... Só, às vezes, isso me dá raiva... Mas eu gosto que você seja mesmo assim...
Fechei-me no quarto. Pela janela aberta entrava um cheiro de mato misantropo. Debruceime. Noite sem lua, concha sem pérola. Só silhuetas de árvores. E um vagalume lanterneiro, que riscou um psiu de luz.
Por que será que Maria Irma mudou de maneira?... Não sei e nem quero saber. Uma mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça. Tertuliano Tropeiro aconselha:
— Seu doutor, a gente não deve ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo...
Vou dormir.
Em noite de roça, tudo é canto e recanto. E há sempre um cachorro latindo longe, no fundo do mundo.

***

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Minha Gente - Parte I

Assim como Mensagem, de Fernando Pessoa, Sagarana é um dos grandes mistérios do mundo dos concursos literários. Guimarães Rosa, segundo ele mesmo afirma, inscreveu a obra porque precisava muito do dinheiro na época. E é incrível que a obra tenha ficado em segundo lugar! O primeiro é um absoluto e ilustre desconhecido... Sagarana é uma coletânea de contos passados em Minas Gerais, terra do autor. O conto a seguir, segundo ele descreveu a um amigo, João Condé: Minha Gente - Por causa de urna gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais. Nos próximos posts, colocarei por partes esse conto com alguma coisa da biografia do autor. Eis a primeira.


Tira a barca da barreira,  
deixa Maria passar: 
Maria é feiticeira,  
ela passa sem molhar.” 
(Cantiga de treinar papagaios) 


Minha Gente - Guimarães Rosa


Quando vim, nessa viagem, ficar uns tempos na fazenda do meu tio Emilio, não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas mil malditas e difícil catação; que a fruta mal ma dura da cagaiteira, comida com sol quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos às primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, quando um cavalo começa a parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás, com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha que aprender.
Por aí, logo ao descer do trem, no arraial, vi que  me esquecera de prever e incluir o encontro com Santana. E tinha a obrigação de haver  previsto, já que Santana que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista de dez ou doze municípios a percorrer — era o meu sempre-encontrável, o meu “até.. as-pedras-se-encontram” — espécie esta de pessoa que todos em sua vida têm.
— Vai para a fazenda? Vou aos Tucanos. Vamos juntos, então. Santana jamais se espanta. Dez anos de separação ter-lhe-iam  parecido a mesma coisa que dez dias. Não tem grandes expansões nem abraços. Tem apenas duas bossas frontais poderosas, olhos bons, queixo forte, e riso bom em boca má. E, no mais, para ele a vida é viva, e com ele amasiada.
— Mas Santana, deixa ao menos ver se vejo algum camarada com a condução...
—Deve ser aquele.. .Vou arranjar cavalo para mim. Temos boas quatro horas de caminho comum... Um match em três partidas!
Com Santana, a gente tem sempre de reagir; contra a sua personalidade de alta voltagem e sua lacônica tirania. Já me preparo. Mas sei que, daqui a pouco, ele estará reaparecendo, cavalgando um eqüino ou um muar qualquer, arrebatado ao primeiro conhecido que encontrar. E sei também que, entrementes, ter mais funda a entrebossa: problema em três lances, em elaboração.
Porque o seu fraco, e também o seu forte, é o “nobre jogo de xadrez. Em tal grau, que ele sempre traz consigo, na mala de viagem: um tabuleiro grande; uma coleção de peças grandes; outros trinta e dois trebelhos de menor formato; mais outro jogai de reserva, dos de bordo, com os escaques perfurados para se atarraxarem os pinos das figuras; blocos-diagramas, para com posição de problemas; números  de L’Échiquier”e de “La Stratégie”;  recortes de jornais, com partidas dos grandes mestres; e alguma roupa, também.
Mas o camarada constituía mesmo a comissão de recebimento, e o cavalo — baio ruano calçado de preto — era o para mim.
—Padrim Emílio mandou dizer que ele vinha mas não veio, e que é p’ra o senhor ir...
Também já voltava Santana, montado num burro casmurro. E eu quis comandar, por minha vez:
—“Vamos! Partamos! Já Circe, a venerável, me advertiu!...”
Mas Santana, que é criatura do Caraça, retrucou:
— “Vinde, amigos, perguntai ao estrangeiro se sabe ou se aprendeu, algum dia, qualquer jogo...
Esporeou o burro, e acrescentou:
— Você joga com as brancas. Toma...
E Santana estende-me a carteirinha, porque há também a carteirinha, o xadrezinho de bolso, que eu me esquecia de mencionar; tão permanente na  algibeira do meu amigo como os óculos de um míope na cara de um míope. Apenas, muito menos necessária: quem quisesse, de maldade, escamoteá-la, logrado ficaria; porque Santana, em encontrando parceiro, joga à cega: tem ainda um tabuleiro e outras peças, na cabeça, talvez no recheio dos dois murundus da testa — duas testas paralelas, como a viseira de uma saúva.
A ladeira para a Rua de Cima ainda é a mesma, O guia entra pelo beco do Saraiva. Imbrico C3BR e passo a Santana a carteira. Santana faz P4D e devolve-me a carteira. Enfio um peão no escaninho 4BD e es tendo a carteira. Recebo outra vez a carteira, com não me lembro mais que resposta. Movo P3CD e estico braço e carteira. Mais idas e vindas da dita. E, pronto. Acabaram-se os lances automáticos da abertura. Agora Santana tem que pensar antes de cada jogada, e eu gozo folga para apreciar a paisagem um pouco.
A casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura, de barra azul. Estamos saindo da Rua de Cima, por onde as vacas de seu Antonico Borges transitam. Lá vem o zebu, branco-e-cinza, de orelhas moles, tombadas, batendo a barbela pregueada e balançando a corcova a cada movimento. Possante, quase um elefante. No meu tempo de menino, já era assim: de noite, na rua muito escura, a gente queria evitar os cabritos, que  dormiam a direita, e tropeçava a esquerda, numa vaca sono lenta. Uma vez, o zebu — deve ter sido o pai deste — deu uma carreira em Dona Maria Alexandrina, que voltava da reza. Dona Maria Alexandrina caiu numa valeta, e... Santana entra em cena:
—Pronto. Você podia jogar mais depressa. A partida está desinteressante.
—Não acho.
—Era melhor continuarmos aquela “Ruy López” que não acabamos, da última vez...
Fico rindo. Não do poder que tem Santana de conservar partidas de memória, nem da sua capacidade de ignorar grandes escoamentos de tempo, com o que, algum dia, hei vê-lo tirar do bolso a carteirinha, esta mesmíssima carteirinha, e propor-me a continuação daquela partida — subvariante K da variante belga do sistema Sossegovitch-Sapatogoroff do contra-ataque semi-frontal iugoslavo do peão do Bispo da Dama — interrompida, dez anos antes, precisamente no lance dezenove.
Não. Outro é o pai do meu riso: Santana, ledor de Homero e seguidor de Alhókhin, também, como um e outro, cochilou. Moveu uma jogada frouxa, e agora não tem o que escolher. Ou compromete a posição do seu rei, ou perde uma peça, porque bispo e um cavalo poderão ser atacados, em forquilha, por um peão branco. Referve a confusão, nos paços de Ítaca.
Santana avermelhou-se todo; e então eu vejo que ele viu que eu tinha visto; e aí ele se zanga, por detrás das palavras:
— Não gosto de partidas fechadas. Avancei P4BR, para levar o jogo a situações violentas, com possibilidade de alguma combinação. Se tivesse...
—Não adianta falar, porque...
— . . . se tivesse mantido o desenvolvimento posicional puro...
— . . . porque, como diz o capiau conterrâneo, “a minha parte de histórico eu prefiro em dinheiro!”...
Santana jamais retrocede do que afirma: é “piéce touché,  pièce jouée”. Para me obrigar a ouvir, atravessa o seu burrinho à frente do meu cavalo, barrando oT.  Mas reajo:
—Olha que beleza, ali!
Na serra, verde-malaquita, arquipélagos de reses, muito alvas, pastando, entre outras ilhas, vermelhas, do capim barba- de-bode. E, nos pontos mais ínvios da encosta, tufos do catinga- de-bode florido, em largas manchas azuis.
Do lado esquerdo, não havia tapume: era mesmo o mato mau, reenchido e imprensado, numa escarpa de folhagens e troncos. À direita, porém, a cerca de arame, meio quilômetro de pasto plano, depois o morro. E, do alto do morro até à base do morro, e da base do morro até à beira da estrada, boi e mais boi. Até encostados na cerca, indiferentes à nossa presença, havia. Alguns, de pé, estavam virados para cá, ruminando. Nós passávamos bem por debaixo do bafo. E o espesso cheiro morno, o bom boium —  leite-sombra-capimcouro— melhor que o aroma de selva da outra margem, era um amor.
Mas já Santana rearrumara as peças e sumia no bolso a carteirinha
—Adiemos esta partida. Vamos conversar.
Concordei, a bem da harmonia contemplativa. E Santana fala: partidas fechadas.., xadrez e memória... psicologia infantil.., cidade e roça... escola ativa.., devoção e nutrição.., a mentalidade do capiau... E quer dar xeque, sendo eu o rei:
—Veja este que vai aqui à nossa frente: é um camarada anal. fabeto, mas, no seu campo e para o seu gasto, pensa esperto. Experimente-o.
Gostei da idéia, e olhei ao redor, buscando um tema. Lá adiante, havia uma assembléia, caudejante e ruminativa, de bois e vacas. Sobre eles, com elegância decadente e complicada pintura de roupagens, passeavam os caracarás. Interpelei o guia: —Chega aqui, José. Aqueles gaviões ali nos bois são caracarás, não são?
—São sim senhor, seu doutor.
—Uma beleza, você não acha? Que é que você acha de mais bonito neles?
José Malvino sorriu sem graça, pensando que eu estivesse querendo fazê-lo de bobo. Mas disse:
—Se o senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pássaros, eu cá é que não vou dizer que eles são feios... Mas, p’ra mim, seu doutor não leve a mal, p’ra mim, coisa que não presta não pode ter nenhuma beleza...
—Então, José, você não admira coisa alguma neles? Nem as pernas calçudas? Nem o topete preto? Nem a nucazinha pedrês? Nem as penas do rabo, mal misturadas, claras e escuras, como o penacho de uma peteca?! ... E eles não são úteis? Não servem para comer os carrapatos?
— É, p’ra isso lá ele presta, sim senhor... Mas o senhor não vê que ele bica também o umbigo de bezerro novo, e mata o coitadinho... Aqueles ali, sim, fazem a limpeza direito... E José Malvino mostra os anus, transitantes, saltitantes, atarefados, pintando de preto os costados de outros bois.
Santana sorri. Vingo-me:
— José, você é um companheiro de primeira, porque não tem a mania de jogar xadrez...
—Bondade sua, seu doutor... Só que eu nem não sei que buzo é esse...
—Você não reparou naquele trem, naquela coisinha, que, na saída do arraial, eu bulia nela e passava para o senhor Santana?
—An-han!...  Reparei, sim senhor... Não era o livrinho vermelho, aquela cartilha de seu Santana ensinar seu doutor a aprender a ler?
Santana ri, e eu tenho que rir junto.
Mas, sem que eu o tivesse percebido, nós e a estrada já nos afastamos das pastagens. Agora é um caminho mais apertado, chão pedrento, talhando o cerradão. E a aragem traz o aroma evocativo do pau-santo, o cheiro açucarado das gabirobas, e o odor enjoativo dos muricis. Santana se ericaramujou: está ausente deste mundo,  no departamento astral dos problemistas. E este deve ser um dos motivos da segurança com que ele enfrenta qualquer roda ou ambiente: haja algum senão, sejam os outros hostis ou estúpidos, ou estúpidos e hostis a um tempo, e Santana se encosta em qualquer parte, poste ou árvore, e problemiza,
problemiza sem parar.
Cavalgamos. Subimos. Subir mais. Agora, um lançante contínuo, serra avante em lombo longo, escalando o espigão. E, pronto, o mundo ficou ainda mais claro: a subida tinha terminado, e estávamos em notáveis altitudes. Estalava em redor de nós uma brisa fria, sem direção e muito barulhenta, mas que era uma delícia deixar vir aos pulmões.
E a vista se dilatara: léguas e léguas batidas, de todos os lado colinas redondas, circinadas, contornadas por fitas de caminho e serpentinas de trilhas de gado; convales tufados de mato musgoso; cotilédones de uteiros verde-crisoberilo; casas de arraiais igrejinhas branquejando; desbarrancados vermelhos; restingas de córregos; píncaros azuis, marcando no horizonte uma rosa-dos-ventos, e mais pedreiras, tabuleiros, canhões, canhadas, tremembés e itambés, chãs e rechãs.
Ali, até uma criança, só de olhar ficava sabendo que a Terra é redonda. E eu, que gosto de entusiasmar-me, proclamei:
—Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão...
Santana ouviu, e corrigiu:
—Por que você não diz: o Brasil?
E era mesmo. Concordei.
Em vôo torto, abrindo sol e jogando sol para os lados, passou um gavião-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes asas, sobrecruzou a crista da cordilheira, mudando de bacia; viera de rapinar no campo das águas que buscam o ocidente, agora se afundava nas matas marginais dos arroios que roja para leste. Estava tosando ar alto, mas nós olhávamos o vôo etc mo quem se inclina para espiar um peixe num aquário.
Depois, o urubu. Pairou, orbitando giros amplos. Muito tempo. Mesmo para os seus olhos de alcance, era difícil localizar o alimento. Fechou, pouco a pouco, os círculos. Descaiu, de repente, para um saco em meia-lua, entre duas vértebras de serra. Adernou. E soçobrou no socavão.
E muitos outros urubus, vindos de todas as direções,convergiam para aquele buraco. De vez em quando, alguma coisa devia ir mal, lá por baixo, porque eles subiam do cafundó, revoluteando, que nem, em tarde de queimada, restos de folhas num  redemoinho de vento. Deslocavam-se, alternando de planos,  avançando uns e crescendo, enquanto outros fugiam fundo, em grãos minúsculos. Até que, de novo, desfaziam os pontos de dominó, e, a um tempo, se abatiam para o brechão.
— Carniça de algum bicho do mato.., raposa... — comentou José Malvino.
Não gostei do prosaísmo. Dei rédea ao cavalo, e proferi:
— Melhor um pássaro voando do que dois na mão!... Eis a versão do provérbio, para uso dos fortes, dos capazes de ideal...
—É a versão dos otários, também.
Mas, aí, começávamos a descer. Mau caminho, gretado, a pedir cuidado. Fomos e falamos, sobre a paciência das montadas, muito tempo. Depois, rota plana, uma hora a fora. E grandes campos, monótonos, se ondulavam, sob o céu.Topamos com um corguinho amável — um ribeiro filiforme, de corrida cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da sombra e atravessava a estrada. Sorria. O camarada sustou o cavalo. Paramos.
—Se seu doutor mais seu Santana acharem que é a hora, a gente pode comer aqui mesmo, que é o lugar melhor... José Malvino tinha trazido boa matalotagem. Santana se munira de pão e latas de sardinha. Apeamos, para ajantarar. O riacho cantou, cantou. Quando montamos de novo, entardecia. Apressamos a marcha. De repente, o José Malvino, estacando o animal, curvou-se para examinar qualquer coisa no
chão.
—Que é que você está olhando, José?
—E o rastro, seu doutor... Estou vendo o sinal de passagem de um boi arribado. A estrada mestra corta aqui perto, aí mais adiante. Deve de ter passado uma boiada, O boi fujão espirrou, e os vaqueiros decerto não deram fé... Vigia: aqui ele entrou no cerrado... Veio de carreira... Olha só: ali ele trotou mais devagar...
—Mas, como é que você pode saber isso tudo, José? indagou Santana, surpreso.
— Olha ali: o senhor não está vendo o lugarzinho da pata do bicho? Pois é rastro de boi de arribada. Falta a marca da ponta. Boi viajado gasta a quina do casco... Eles vêm de muito longe, vêm pisando pedra, pau, chão duro e tudo... Ficam com a frente da unha roída... É diferente do pisado das reses descansada que tem por aqui...
Não consigo dissociar alguma coisa nas pegadas. E continuamos, seguindo o sol, quase em tramonto — um sol de recorte nítido, não ofuscante. Refrescou. E a estrada subia e descia mas, como as descidas eram muito menores, nós subíamos sempre. A tarde tinha recuado. Um resto de cirros, no alto, alvas trabéculas rarefeitas; um empilhado de faixas, tangerina rosa, no poente; no mais, o céu era lisa campânula de blau.
De brusco, no tope do outeiro que íamos galgando, surgiu um cavaleiro, caído do sol. Ficou parado, um momento, sopesando a vara longa. E era bem um São Jorge, enrolado em claridade amarela e coroado de um resplendor carmesim. Depois, frechou para nós. Trancou o trote, rente a  José Malvino. O cavalo soprou, e aproveitou a pausa para arquejar. í um baio de crina aparada, e o seu suor cheirava a brisa
marinha. O cavaleiro sacudia os ombros, sem poder acabar de rir. Cumprimentou e indagou.
—Não viram um boi magro, passeando por aí?
José Malvino informou:
—O rastro dele está quentinho. Aí adiante, no lugar adonde o senhor ver, desta banda de cá, bem na beira da estrada, i angico solteiro, em antes de um pé de araticum emparelha com dois barbatimãos abraçados, pois foi aí mesmo que ele embocou no mato... Mas, ainda que mal pergunte, de onde é que estão vindo com essa boiada, amigo?
— De um mês quase de viagem... Da nascença do Roncador...
O vaqueiro riu outra vez, olhando para trás, para o cimo da colina.
—Seu cavalinho, amigo, é assim meio sambanga, mas tem jeito de ser correto... Mas, como é que o senhor, que devia de estar enjerizado com esse serviço ruim de arribada, está assim tão safirento, rindo tanto sem a gente saber de quê?
—É por causa dos companheiros, que vêm aí atrás... Devem de estar danados, porque eu aticei marimbondo neles... Bem, vou indo. Deus lhe pague, amigo! E afundou com o cavalo morro abaixo.
Então, José Malvino explicou:
—Brincadeira boba de vaqueiro. Eles vão indo direitinho, conversando... De longe, um enxerga uma casa de marimbondo, num galho... Se ele tiver cavalo bom, corredor, bate com a vara ou com o chicote na caixa de marimbondo, e esgalopeia: a marimbondada sai toda, assanhada, desesperada de raiva, e ajunta nos outros, e nos cavalos, ferroando... Os cavalos pegam a pular, e o pessoal xinga nome feio... Às vezes até cai algum no chão... O melhor de todos é o marimbondo-enxu, que é uma vespa danada, que vem longe, voa até quase meia légua, escara muçando povo... É um pagode!
Chegando ao alto do morrete, avistamos dois outros cavaleiros, que desciam a contraencosta. Cá embaixo, cruzamos. Estão furiosos; são campeiros do Saco do Sumidouro: não tinham nada com a boiada forasteira, nem conheciam o vaqueiro, que passara por eles e pedira adjutório para desentocar o boi arribado; mal haviam juntos meio quarto de légua, e fora a peça dos marimbondos...
—Que vão fazer, agora? — perguntei, receoso de um conflito no meio do cerradão.
— Vamos ajudar o diabo do vaqueiro, uai! Mas vocês não estão com raiva dele?
—  Que nada... À hora em que a gente puder, tira a forra! Quero ver se arrumo um jeito de tafulhar esta pedrinha pontuda por debaixo do suador da sela do desgramado... O cavalinho é  niquento... Agaranto que o animal vai tacar um joão no chão!...
E galoparam.
Prosseguimos.
Mas, havia uma cruz, e José Malvino contou:
—Aqui foi que enterraram o bexiguento... Isto já faz muito, não é do meu tempo...
O varioloso tinha caído com febre, muito mal, quando passava por aqui. Ia para uma qualquer parte, vindo depressa para casa, de volta do sertão. Levaram-no para uma cafua, lá em baixo, num rabo-de-grota. Só uma mulher velha, que já tivera a doença e pois estava imunizada, era quem cuidava dele. E o homem sofria e delirava, e tinha medo, tinha horror de ficar sozinho. Pedia, chorando, que queria ver gente, outras pessoas, muita gente junta, ainda que fossem estranhos. E então, quando a febre amainou, na melhora pré-agônica, ele conheceu que ia morrer, e implorou que o enterrassem bem à beira da e onde o povo passasse, onde houvesse sempre gente a passar..
—  Lugar assombrado! conclui José Malvino.
É a quarta ou quinta vez que ele indica lugares malassombrados. Já sei: todo pau-d’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por qualquer causa, fizeram estância, depondo o esquife no chão; todas as encruzilhadas — mas somente à meia-noite; todos os caminhos: na quaresma— com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, e o cramondongue, que um carro-de-bois que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar.
— Aqui, vamos descer, de uma vez. Estamos chegando, seu doutor. Santana emerge dos seus cálculos:
— Bem, aqui nos separamos. Antes das dez, estou nos Tucanos... Loucura, viajar de noite, sozinho, por essas serras...
— Venha comigo. Você janta e dorme na fazenda, e...
— Não posso. Fica para outra vez. Sobrou um resto da matula... O burro é bom...
—Teimosia!
— Não posso, mesmo. Falta-me encontrar um meio de impedir o “furo” pelo xeque de cavalo, sem modificar a posição do rei branco... Há um peão mal colocado, e não quero aumentar o número de peças brancas... Isso tiraria toda a beleza do problema... Se...
— E quando você aparece? Por estes dias?
— Impossível. Tenho uma enfiada de escolas por visitar, e devo tomar o trem muito longe daqui. Até outra vez!...
E Santana toca, na mesma andadura, sem se voltar. Mas tornarei a vê-lo, sei. E é graças aos encontros inesperados dos velhos amigos que eu fico reconhecendo que o mundo é pequeno e, como sala-de-espera, ótimo, facílimo de se aturar...
Uma descida, íngreme e pedrosa. Funda. Mas, lá em cima, ainda está claro, porque lá em cima é o araxá.
Descemos ainda. Vadeamos um regato raso. De sombra  em sombra, a estrada anoitece, entrando debaixo do mato, porque as arvores tecem teto. Os animais querem andar mais ligeiro. E é a derradeira descida, pois a casa da fazenda fica num umbigo de taça.
— Por que não fazem as casas em lugar alto, José Malvino?
—  Sim senhor, seu doutor, bem bom que era. Mas dava um trabalhão p’ra se carrear água lá p’ra riba... Nesses altos, a gente pode campear, que aguada não se acha nenhuma, não senhor.
Uma porteira. Mais porteiras. Os currais. Vultos de vacas, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear.

***

sábado, 13 de outubro de 2012

A Última Crônica

Como fanática assumida de crônicas, o gênero brasileiro, apresento o excelente espécime abaixo, ótimo exemplo do tipo, a Última Crônica, de Fernando Sabino. Ela não é uma crônica engraçada, mas retrata muito a realidade. Podemos quase vê-la, acontecendo nos eventos do dia-a-dia. E ela chega a dar "um calorzinho no coração". Não temos propriamente pena. Antes, invejamos aquela felicidade pura das pequenas alegrias da vida perdidas no rebuliço do mundo.


A Última Crônica


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Tertuliano, o paspalhão

Como diz Glauco Mattoso no seu excelente blog de coletânea de sonetos, http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/nsonetario.htm : "Ao longo de nossa história literária o soneto tem sido usado, com vantagem, para exercer a mesma função epigramática da trova ou da glosa decimal. Tanto na sátira política quanto na crônica de costumes ou na caricatura pessoal, o soneto é espaço mais propício ao retoque de um retrato psicológico ou social, no qual se patenteie simultaneamente a
perícia do fotógrafo. Quem assina o flagrante pode não ser poeta consagrado; pode até ser consagrado noutro departamento intelectual: mas o potencial crítico dum soneto certeiro terá validade permanente. Desnecessário lembrar que, apesar de ter sua relevância subestimada pela análise literária dita "séria", o gênero satírico é intrínseco à poesia desde seus primórdios. Basta citar, no caso brasileiro, Gregório de
Matos, a cujo verbete remeto o leitor. Neste espaço juntei alguns exemplos de sonetos satíricos além daqueles que se encontram nos verbetes mais renomados, como os do próprio Gregório, de Emílio de Meneses ou de Juó Bananére."


Sobre um playboy, versejou o comediógrafo Artur Azevedo:

TERTULIANO, O PASPALHÃO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!