Em 1962, após anos de não publicações, onde seu prestígio como escritor crescia e a publicação de Grandes Sertões: Veredas, consegue entrar na Academia Brasileira de Letras.
Seu estilo, marcado pelo regionalismo, a criação de novas palavras de cunho popular misturado ao erudito, alcançou a esfera internacional e criou um estilo como que novo na literatura brasileira, sendo o romancista mais importante da 3a geração do modernismo brasileiro.
Sua obra foi bastante vasta, contendo principalmente coletâneas de contos, todos sobre o povo e a terra.
Guimarães Rosa morreu em 19 de novembro de 1967, 3 dias depois de ter tomado oficialmente posse de sua cadeira entre os imortais.
Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte III
Horrível! Horrível o que hoje aconteceu. E quem convidou fui eu! Bento Porfirio bem que não queria ir. Eu era quem estava Com saudade dos estranhos sussurros do poço. Porque todos os córregos aqui são misteriosos — somem-se solo adentro, de repente, em fendas de calcário, viajando, ora léguas, nos leitos subterrâneos, e apontando, muito adiante, num arroto Ou numa cascata de rasgão. Mas o mais enigmático de todos é este ribeirão, que às vezes sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado para minguar, de
pronto, menos de uma hora depois. Há, contínuo, aqui ou acolá, um gluglu, um chupão líquido, água rolando n’água; lá embaixo, nas pedras, a corredeira se apressa ou amaina; mas o som nunca é o mesmo de dois instantes atrás.
Os mangues da outra margem jogam folhas vermelhas na corrente. Descem como canoinhas. Param um momento ali naquele remanso, perto das frutinhas pretas da tarumã.
Olhos de Maria Irma... Bobagem, eu vou gostar mais de olhos castanhos, de olhos verdes... Suecas, húngaras, dinamarquesas... polonesas de olhos pardos...
O ribeirão mudou de tom. Você ouviu, Bento? Ronca. Está se enchendo outra vez, sem turvar a água... De repente, o sabiá! Veio molhar o pio no poço, que é um bom ressoador. E quer passar a sua tristeza para a gente. Mas, agora, já sabemos nos defender. Podemos desmerecê-lo, quebrar-lhe a potência de acumulador de mágoas e dor de saudades. E, sem nenhuma combinação:
Eu disse:
— Gênero turdus... Um flavipes ou rufiventris...
E Bento berrou:
— Ô bicho enjoado! Vai chamar chuva noutra parte!.. A modo e coisa que está botando ovoe veio comer minhoca de beira de córgo... Cruz!
E cantou, alto, para abafar os lamentos do outro:
“Ouvi um sabiá cantando
na beira do ribeirão...
Ô pássaro que canta triste!
Não me traz consolação...”
Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque a cantiga do Bento ainda era mais melancolizante. Agora é o córrego que parece triste. Trocou outra vez de toada... Deve ter uma lavadeira lavando roupa e chorando, lá longe, lá longe, lá para trás dos morros frios, onde há outras roças, outra gente, outro sabiá...
Afinal, quem é que é burro?! Que foi que nós viemos fazer aqui?... Os cigarros seacabaram. Vamos voltar para casa, Bento Porfírio?
— Já, já... É só o tempinho d’eu pegar aquele dourado dançante, que prancheou ali agorinha mesmo... Queixo esperto! Tabarão! Já comeu três iscas... Mas hoje é o dia dele! Cada qual tem o seu dia... E peixe é bicho besta, que morre pela boca...
Bento Porfírio volta a falar na amante: o marido, o Alexandre, não sabe que está sendo enganado... Mas aquilo não é pouca-vergonha, não: é amor sério... A de-Lourdes não tolera o marido, não dorme com ele, não beija, nem nada... Estão combinando fugir juntos... Braços morenos... (Maria Irma!)... lenço vermelho na cabeça... metade... agaranto... anto...ão... eu... é...
Não escuto mais. Estou namorando aquela praiazinha na sombra. Três palmos de areia molhada... Um mundo!... Que é aquilo? Uma concha de molusco. Uma valva lisa, quase vegetal. Carbonífero... Siluriano.,. Trilobitas... Poesia... Mas este é um bicho vivo, uma itã. No córrego tem muitos iguais...
Bento Porfírio suspira fundo. Continua falando alto:
— ...estava de branco.., na vinda p’ra cá bateu a mão, saudando... O Alexandre é um bobo a gente vai ser feliz... ...de-Lourdes... ... p’ra longe... ... nem não há...Não há... Não há... Não ouço mais o Bento. Há qualquer coisa estranha aqui... Há mais alguém aqui! Alguém está escutando! Não tenho coragem para voltar o rosto.
Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes,descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensangüentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.
Agora me acalmo. Não me fizeram nada. Só estou é com a roupa molhada, do espirrão da água. Também, aqui não é de; uso dar-se voz de prisão... E não posso pedir ao assassino que me ajude a tirar o Bento do poço. Corro para casa. No caminho, recupero parte da compostura.
Tio Emílio acabava de chegar da vila, e, sentado no banco do alpendre, labutava para descalçar as botas.
Fui falando, esbaforido, insofrido. Mas meu tio, cortando o jacto das minhas informações, disse:
— Espera um pouco.
Trabucou mais dois minutos. Afinal, conseguiu desfazer-se das botas e calçou os chinelos.
Perguntou:
— Você tem certeza de que o Bento já está morto?
— Mortíssimo. Morreu em flagrante...
—Ah!...
E levantou-se calmamente, e calmamente pegou a andar na varanda, no vaivém de sempre, pensando, pensando. Nem me via. Sentei-me no banco, com raiva de tanta fleuma e querendo ver o que ele iria resolver. Por fim, parou e rosnou.
— Como é que o Xandrão Cabaça, tão sem idéia, foi descobrir a história lá deles? Boi sonso, marrada certa!
Chamou o Norberto, o capataz, e mandou que fosse ver o corpo. E que corresse alguém ao arraial, para chamar o subdelegado.
O capataz saiu, convocando os camaradas. Meu tio se chegou para o parapeito, e tirou o fumo mais o canivete. Não me contive: — Mas,Tio Emilio, o senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim? Não vai mandar, depressa, gente atrás do Alexandre, para
ver se o prendem?
Tio Emílio, alisando a sua palha, e com o sorriso que um sábio teria para uma criança, olhou-me, e disse:
— Para os mortos... sepultura! Para os vivos.., escapula!
Humilhei meus pendões. Calei-me. Meu tio esfregava nas palmas das mãos o fumo picado. Enrolou o cigarro. De súbito, bateu na testa e pulou:
- Não é que eu não sei onde é que eu estava mesmo com a cabeça?! Ô Gervásio, corre aqui!... Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco...
Tirou dinheiro do bolso e entregou ao mulato. Ajunta, depressa, uns homens, para campearem o Cabaça. Espera aí... Ele para o lado da vila não ia, com medo dos soldados... Para o Marimbo, também não, pois é onde que mo ram todos os parentes dele, e ele sabe que a gente havia de querer ir procurar lá... O Calambau era o melhor lugar para um se esconder, mas o Xandrão Cabaça é burro, não acertava de ter pensado nisso, não. Para os lados do Piau Não, acho que também não ia, porque no Piau vive o irmão do Bento... Nem para as Porteirinhas... Nem para os Tucanos... Ele foi mas é pa ra o Bagre, com tenção de, de lá, esquipar para o sertão! Vocês cacem de ir atrás dele, passando pelo atalho das Moreiras. E segurar e trazer. Mas voltem por dentro, pelo caminho do mato, que é para ninguém ver e nem ficar sabendo... Levem o Cabaça para a tapera do Retiro. Expliquem bem a ele, que ele vai ficai lá garantido, escondido das autoridades, até a gente arrumar as coisas, os jurados e tal.., O Cabaça é muito jumento e ignorante, e é capaz de não querer acreditar; se fizer barulho, vocês sojiguem, nem que seja peado e no tronco,.. E tio Emílio se sentou na cadeira-de-pano. Acendeu o cigarro. Tirou uma fumaça e espiou para ela. De repente, se mobilizou em pé, com grande susto para mim, e gritou pelo Gervásio, que já ia longe. Falou só:
— Vão no Calambau! Foi para lá que o Cabaça foi.
E sentou-se outra vez, ora descansado, murmurando:
— É isso... Capivara, a primeira vez que bate um trilho, passa com jeito. Depois, vai-se acostumando com o caminho, e pega a relaxar... Foi assim que o Bento morreu. Agora a gente tem é de ver os jurados, para o júri do leso do Xandrão Cabaça...
Saí para os fundos da casa. Maria Irma estava dando água às latas de plantas: jurujuba, dinheiro-em-penca e beicinho-de-sinhá. Narrei-lhe a tragédia. Minha prima levantou os supercílios, e seus olhos formosos se arredondaram, descobrindo o branco por cima da íris; e foi apenas com isso que revelou algum espanto.
— Coitadinha da Bilica... e da mulher do Alexandre... — disse. — Por causa da falta de vergonha de um, e da do outro, quem vai sofrer agora são as duas pobrezinhas...
Pororoca! Será que ninguém aqui pensa como eu?!...
Quero ir dormir, sem jantar, sem conversa de sede e siso.
***
Voltou a chover, O dia inteiro. Caiu um raio, na porteira do curral grande. Rega miúda, aborrecida. Só às vezes, sem aviso, despenca um maço d’água mal amarrada, ou zoa uma chuva rajada flechando o chão em feixe diagonal. Depois, estia devagar: já se escutam as goteiras. Ao pé da minha janela, a enxurrada desce para o bueiro, numa efêmera cascata suja, com inconveniências de cochicho e bochecho. E, quase que o dia inteiro, um sapo sentado no barro, se perguntava como foi feito o mundo.
Passei todo o tempo no quarto, lendo, pensando. Imaginei mesmo um romance, do qual Bento Porfírio, bem vivo, seria o herói.
Mas, agora, estou com remorso, porque não acompanhei o enterro; malícia dum momento, o Bento indo por essas estradas, estúpidas de lama. Chovia, na verdade, porém, a chuva não impediu Maria Irma de sair, para visitar e confortar a viúva e a outra. Meu tio também se mostrou assaz generoso para com as duas. Minha gente é boa.
Houve o arco-da-velha no céu, num abrir de sol, mostrando as cores, com um pilar no mato e o outro no monte.
Mas, cataplasma! Já começa a chover outra vez.
***
Chove. Chuva. Moles massas. Tudo macio e escorregoso. Com o que proferiu Gotama Buddha, o pastor dos insones, sob outras bananeiras e mangueiras outras, longínquas:
“Aprende do rolar dos rios,
dos regatos monteses, da queda das cascatas:
tagarelante, ondeia o seu caudal —
só o oceano é silêncio.”
Mas, do mudo fundo, despontam formas, se alongam. Anfitrites dormidas, na concha da minha mão, e anadiômenas a florirem da espuma.
Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emilio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais de uma semana. A varanda era uma praia de ilha, ao mar da chuva. Meu espírito fumaceou, por ares de minha só posse — e fui, por inglas de Inglaterras, e marcas de Dinamarcas, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Dária, da Circássia; Ragna e Aase; e Gúdrun, a de olhos cor dos fiordes; e Vivian, violeta; e Érika, sílfide loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Viadislava, císnea e junoniana; e a
princesinha Berengária, que vinha, sutil, ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos...
Quem veio foi Maria Irma, num vestido azul-marinho, tanto corada e risonha.
— Sonhei. Sonhei demais, prima... Que é do tio?
— Foi dormir na cama, que é lugar mais quente.
— E você?...
— Queria perguntar uma coisa...
— Pergunte, Maria Irma. — Não. Não sou curiosa.
— Então, eu sei o que é...
— Então?
— É a respeito... Bem, é sobre. . . Você quer saber se eu deixei algum amor, a esperar por mim?
— Se deixou, ou não, não me interessa...
— Então, por que você quis perguntar, prima?
— E por que foi que você adivinhou a pergunta, primo?
***
Manhã maravilha. Muito cedo ainda, depois de gritos de galos e berros de bezerros, ouvi alguém cantar. Fui para a varanda, onde adensavam o ar os perfumes mais próximos, de vegetais e couros vivos. Sob a roseira, de rosas carnudas e amarelas, encontrei Maria Irma. Perguntei se era ela a dona de tão lindo timbre. Respondeu-me:
— Que idéia! Se nem para falar direito eu não tenho voz...
— Diga, Maria Irma, você pensou em mim?
— Não tenho feito outra coisa.
— Então...
—-Vamos tomar leite novo?
— Vamos!
.................................................................................
— E agora?
—Vamos tomar café quente?
—Vamos e venhamos...
...................................................................................
— Mas, Maria Irma...
— Vamos ver se a chuva estragou a horta?
Havia uma cachoeira no rego, com a bica de bambu para o tubo de borracha. Experimentei regar: uma delícia! Com um dedo, interceptava o jacto, esparzindo-o na trouxa verde meio aberta dos repolhos, nas flácidas couves oleosas, nos tufos arrepiados dos carurus, nos quebradiços tomateiros, nos cachos da couve-flor, granulosos, e nas folhas cloríneas, verdeaquarela, das alfaces, que davam um ruído gostoso de borrifo.
Maria Irma, ao meu lado, pôs-me a mão no braço. Do cabelo preto, ondulado, soltou-se uma madeixa, que lhe rolou para o rosto.
Eu apertava com força o tubo da mangueira, e o jorro, numa trajetória triunfal e libertada, ia golpear os recessos das plantinhas distantes. De repente, notei que estava com um pensamento mau: por que não namoraria a minha prima? Que adoráveis não seriam os seus beijos... E as mãos?!... Ter entre minhas aquelas mãos morenas, um pouquinho longas, talvez em desacordo com a delicadeza do conjunto, mas que me atraíam perdidamente...
Acariciar os seus braços bronzeados... Por que não?...
Súbito, notei que Maria Irma se ruborizava. E arrebatou a borracha, com rudeza quase:
— Não faz isso, que você está tirando a terra toda de redor dos pés de couve!
E, com um meio sorriso, querendo atenuar a repentina aspereza:
— Além disso, tem chovido, e ainda não é preciso regar horta hoje...
E, afinal, com um sorriso todo:
—....e, depois, faz mal molhar as plantas com sol quente. Vamos ver as galinhas?
— Pois vamos ver as galinhas, Maria Irma.
E acompanhei-a, namorando-lhe os tornozelos e o donairoso andar de digitígrado.
Pelo rego desciam bolas de lã sulfurina: eram os patinhos novos, que decerto tinham matado o tempo, dentro dos ovos, estudando a teoria da natação. E, no pátio, um turbilhão de asa e de bicos revoluteava e se embaralhava, rodeando a preta, que jogava os últimos punhados de milho, rolando e com a língua:
— Prrr-tic-tic-tic!
Um gordo galo pedrês, parecendo pintado de fresco com desenhos de labirinto de almanaque, sultaneava, dirigindo preferências a uma galinha ainda mais carijó e mais gorda, vestida de fichas de impressão digital. E veio de lá, ciumento e briguento, outro galo, esse branco, com chanfraduras e pontas na crista caída de lado. Barulho. E então a galinha choca, com cloqueios e passos graves, chamou os pintinhos para longe dali. E havia suras, transilvânias, nanicas, topetudas, calçudas; e guinés convexas, aperuadas; e peruas acucadas; e um peru bronze-e-brasa, de brincos, carúnculas, boné e guardanapo, todo paramentado de framboesas; e patos, esparramados, marrecos mascotes e pombas de casa.
Mas, de supetão, uma espécie de frango esquisito, meio carijó, meio marrom, pulou no chão do terreiro e correu atrás da garnisé branquinha, que, espaventada, fugiu. O galo pedrês investiu, de porrete. Empavesado e batendo o monco, o peru grugulejou. A galinha choca saltou à frente das suas treze familiazinhas. E, ai, por causa do bico adunco, da extrema elegância e do exagero das garras, notei que o tal frango era mesmo um gavião.
Não fugiu: deitou-se de costas, apoiado na cauda do brada, e estendeu as patas, em guarda, grasnando ameaças com muitos erres. Para assustá-lo, o galo separou as penas do pescoço das do corpo, fazendo uma garbosa gola; avançou e saltou, como um combatente malaio, e lascou duas cacetadas, de sanco e esporão. Aí o gavião fez mais barulho, com o que o galo retro cedeu. E o gavião aproveitou a folga para voar para a cerca, enquanto o peru grugulejava outra vez, com vários engasgos.
— Nunca pensei que um gavião pudesse ser tão covarde e idiota .. — eu disse.
Maria Irma riu. — Mas este não é gavião do campo! É manso. E dos meninos do Norberto... Vem aqui no
galinheiro, só porque gosta de confusão e algazarra. Nem come pinto, corre de qualquer galinha...
— Claro! Gavião civilizado...
— U’lalá... Perdeu duas penas..
O sorriso de Maria Irma era quase irônico, Não me zanguei mas também não gostei.
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