Tira a barca da barreira,
deixa Maria passar:
Maria é feiticeira,
ela passa sem molhar.”
(Cantiga de treinar papagaios)
Minha Gente - Guimarães Rosa
Quando vim, nessa viagem, ficar uns tempos na fazenda do meu tio Emilio, não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas mil malditas e difícil catação; que a fruta mal ma dura da cagaiteira, comida com sol quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos às primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, quando um cavalo começa a parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás, com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha que aprender.
Por aí, logo ao descer do trem, no arraial, vi que me esquecera de prever e incluir o encontro com Santana. E tinha a obrigação de haver previsto, já que Santana que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista de dez ou doze municípios a percorrer — era o meu sempre-encontrável, o meu “até.. as-pedras-se-encontram” — espécie esta de pessoa que todos em sua vida têm.
— Vai para a fazenda? Vou aos Tucanos. Vamos juntos, então. Santana jamais se espanta. Dez anos de separação ter-lhe-iam parecido a mesma coisa que dez dias. Não tem grandes expansões nem abraços. Tem apenas duas bossas frontais poderosas, olhos bons, queixo forte, e riso bom em boca má. E, no mais, para ele a vida é viva, e com ele amasiada.
— Mas Santana, deixa ao menos ver se vejo algum camarada com a condução...
—Deve ser aquele.. .Vou arranjar cavalo para mim. Temos boas quatro horas de caminho comum... Um match em três partidas!
Com Santana, a gente tem sempre de reagir; contra a sua personalidade de alta voltagem e sua lacônica tirania. Já me preparo. Mas sei que, daqui a pouco, ele estará reaparecendo, cavalgando um eqüino ou um muar qualquer, arrebatado ao primeiro conhecido que encontrar. E sei também que, entrementes, ter mais funda a entrebossa: problema em três lances, em elaboração.
Porque o seu fraco, e também o seu forte, é o “nobre jogo de xadrez. Em tal grau, que ele sempre traz consigo, na mala de viagem: um tabuleiro grande; uma coleção de peças grandes; outros trinta e dois trebelhos de menor formato; mais outro jogai de reserva, dos de bordo, com os escaques perfurados para se atarraxarem os pinos das figuras; blocos-diagramas, para com posição de problemas; números de L’Échiquier”e de “La Stratégie”; recortes de jornais, com partidas dos grandes mestres; e alguma roupa, também.
Mas o camarada constituía mesmo a comissão de recebimento, e o cavalo — baio ruano calçado de preto — era o para mim.
—Padrim Emílio mandou dizer que ele vinha mas não veio, e que é p’ra o senhor ir...
Também já voltava Santana, montado num burro casmurro. E eu quis comandar, por minha vez:
—“Vamos! Partamos! Já Circe, a venerável, me advertiu!...”
Mas Santana, que é criatura do Caraça, retrucou:
— “Vinde, amigos, perguntai ao estrangeiro se sabe ou se aprendeu, algum dia, qualquer jogo...
Esporeou o burro, e acrescentou:
— Você joga com as brancas. Toma...
E Santana estende-me a carteirinha, porque há também a carteirinha, o xadrezinho de bolso, que eu me esquecia de mencionar; tão permanente na algibeira do meu amigo como os óculos de um míope na cara de um míope. Apenas, muito menos necessária: quem quisesse, de maldade, escamoteá-la, logrado ficaria; porque Santana, em encontrando parceiro, joga à cega: tem ainda um tabuleiro e outras peças, na cabeça, talvez no recheio dos dois murundus da testa — duas testas paralelas, como a viseira de uma saúva.
A ladeira para a Rua de Cima ainda é a mesma, O guia entra pelo beco do Saraiva. Imbrico C3BR e passo a Santana a carteira. Santana faz P4D e devolve-me a carteira. Enfio um peão no escaninho 4BD e es tendo a carteira. Recebo outra vez a carteira, com não me lembro mais que resposta. Movo P3CD e estico braço e carteira. Mais idas e vindas da dita. E, pronto. Acabaram-se os lances automáticos da abertura. Agora Santana tem que pensar antes de cada jogada, e eu gozo folga para apreciar a paisagem um pouco.
A casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura, de barra azul. Estamos saindo da Rua de Cima, por onde as vacas de seu Antonico Borges transitam. Lá vem o zebu, branco-e-cinza, de orelhas moles, tombadas, batendo a barbela pregueada e balançando a corcova a cada movimento. Possante, quase um elefante. No meu tempo de menino, já era assim: de noite, na rua muito escura, a gente queria evitar os cabritos, que dormiam a direita, e tropeçava a esquerda, numa vaca sono lenta. Uma vez, o zebu — deve ter sido o pai deste — deu uma carreira em Dona Maria Alexandrina, que voltava da reza. Dona Maria Alexandrina caiu numa valeta, e... Santana entra em cena:
—Pronto. Você podia jogar mais depressa. A partida está desinteressante.
—Não acho.
—Era melhor continuarmos aquela “Ruy López” que não acabamos, da última vez...
Fico rindo. Não do poder que tem Santana de conservar partidas de memória, nem da sua capacidade de ignorar grandes escoamentos de tempo, com o que, algum dia, hei vê-lo tirar do bolso a carteirinha, esta mesmíssima carteirinha, e propor-me a continuação daquela partida — subvariante K da variante belga do sistema Sossegovitch-Sapatogoroff do contra-ataque semi-frontal iugoslavo do peão do Bispo da Dama — interrompida, dez anos antes, precisamente no lance dezenove.
Não. Outro é o pai do meu riso: Santana, ledor de Homero e seguidor de Alhókhin, também, como um e outro, cochilou. Moveu uma jogada frouxa, e agora não tem o que escolher. Ou compromete a posição do seu rei, ou perde uma peça, porque bispo e um cavalo poderão ser atacados, em forquilha, por um peão branco. Referve a confusão, nos paços de Ítaca.
Santana avermelhou-se todo; e então eu vejo que ele viu que eu tinha visto; e aí ele se zanga, por detrás das palavras:
— Não gosto de partidas fechadas. Avancei P4BR, para levar o jogo a situações violentas, com possibilidade de alguma combinação. Se tivesse...
—Não adianta falar, porque...
— . . . se tivesse mantido o desenvolvimento posicional puro...
— . . . porque, como diz o capiau conterrâneo, “a minha parte de histórico eu prefiro em dinheiro!”...
Santana jamais retrocede do que afirma: é “piéce touché, pièce jouée”. Para me obrigar a ouvir, atravessa o seu burrinho à frente do meu cavalo, barrando oT. Mas reajo:
—Olha que beleza, ali!
Na serra, verde-malaquita, arquipélagos de reses, muito alvas, pastando, entre outras ilhas, vermelhas, do capim barba- de-bode. E, nos pontos mais ínvios da encosta, tufos do catinga- de-bode florido, em largas manchas azuis.
Do lado esquerdo, não havia tapume: era mesmo o mato mau, reenchido e imprensado, numa escarpa de folhagens e troncos. À direita, porém, a cerca de arame, meio quilômetro de pasto plano, depois o morro. E, do alto do morro até à base do morro, e da base do morro até à beira da estrada, boi e mais boi. Até encostados na cerca, indiferentes à nossa presença, havia. Alguns, de pé, estavam virados para cá, ruminando. Nós passávamos bem por debaixo do bafo. E o espesso cheiro morno, o bom boium — leite-sombra-capimcouro— melhor que o aroma de selva da outra margem, era um amor.
Mas já Santana rearrumara as peças e sumia no bolso a carteirinha
—Adiemos esta partida. Vamos conversar.
Concordei, a bem da harmonia contemplativa. E Santana fala: partidas fechadas.., xadrez e memória... psicologia infantil.., cidade e roça... escola ativa.., devoção e nutrição.., a mentalidade do capiau... E quer dar xeque, sendo eu o rei:
—Veja este que vai aqui à nossa frente: é um camarada anal. fabeto, mas, no seu campo e para o seu gasto, pensa esperto. Experimente-o.
Gostei da idéia, e olhei ao redor, buscando um tema. Lá adiante, havia uma assembléia, caudejante e ruminativa, de bois e vacas. Sobre eles, com elegância decadente e complicada pintura de roupagens, passeavam os caracarás. Interpelei o guia: —Chega aqui, José. Aqueles gaviões ali nos bois são caracarás, não são?
—São sim senhor, seu doutor.
—Uma beleza, você não acha? Que é que você acha de mais bonito neles?
José Malvino sorriu sem graça, pensando que eu estivesse querendo fazê-lo de bobo. Mas disse:
—Se o senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pássaros, eu cá é que não vou dizer que eles são feios... Mas, p’ra mim, seu doutor não leve a mal, p’ra mim, coisa que não presta não pode ter nenhuma beleza...
—Então, José, você não admira coisa alguma neles? Nem as pernas calçudas? Nem o topete preto? Nem a nucazinha pedrês? Nem as penas do rabo, mal misturadas, claras e escuras, como o penacho de uma peteca?! ... E eles não são úteis? Não servem para comer os carrapatos?
— É, p’ra isso lá ele presta, sim senhor... Mas o senhor não vê que ele bica também o umbigo de bezerro novo, e mata o coitadinho... Aqueles ali, sim, fazem a limpeza direito... E José Malvino mostra os anus, transitantes, saltitantes, atarefados, pintando de preto os costados de outros bois.
Santana sorri. Vingo-me:
— José, você é um companheiro de primeira, porque não tem a mania de jogar xadrez...
—Bondade sua, seu doutor... Só que eu nem não sei que buzo é esse...
—Você não reparou naquele trem, naquela coisinha, que, na saída do arraial, eu bulia nela e passava para o senhor Santana?
—An-han!... Reparei, sim senhor... Não era o livrinho vermelho, aquela cartilha de seu Santana ensinar seu doutor a aprender a ler?
Santana ri, e eu tenho que rir junto.
Mas, sem que eu o tivesse percebido, nós e a estrada já nos afastamos das pastagens. Agora é um caminho mais apertado, chão pedrento, talhando o cerradão. E a aragem traz o aroma evocativo do pau-santo, o cheiro açucarado das gabirobas, e o odor enjoativo dos muricis. Santana se ericaramujou: está ausente deste mundo, no departamento astral dos problemistas. E este deve ser um dos motivos da segurança com que ele enfrenta qualquer roda ou ambiente: haja algum senão, sejam os outros hostis ou estúpidos, ou estúpidos e hostis a um tempo, e Santana se encosta em qualquer parte, poste ou árvore, e problemiza,
problemiza sem parar.
Cavalgamos. Subimos. Subir mais. Agora, um lançante contínuo, serra avante em lombo longo, escalando o espigão. E, pronto, o mundo ficou ainda mais claro: a subida tinha terminado, e estávamos em notáveis altitudes. Estalava em redor de nós uma brisa fria, sem direção e muito barulhenta, mas que era uma delícia deixar vir aos pulmões.
E a vista se dilatara: léguas e léguas batidas, de todos os lado colinas redondas, circinadas, contornadas por fitas de caminho e serpentinas de trilhas de gado; convales tufados de mato musgoso; cotilédones de uteiros verde-crisoberilo; casas de arraiais igrejinhas branquejando; desbarrancados vermelhos; restingas de córregos; píncaros azuis, marcando no horizonte uma rosa-dos-ventos, e mais pedreiras, tabuleiros, canhões, canhadas, tremembés e itambés, chãs e rechãs.
Ali, até uma criança, só de olhar ficava sabendo que a Terra é redonda. E eu, que gosto de entusiasmar-me, proclamei:
—Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão...
Santana ouviu, e corrigiu:
—Por que você não diz: o Brasil?
E era mesmo. Concordei.
Em vôo torto, abrindo sol e jogando sol para os lados, passou um gavião-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes asas, sobrecruzou a crista da cordilheira, mudando de bacia; viera de rapinar no campo das águas que buscam o ocidente, agora se afundava nas matas marginais dos arroios que roja para leste. Estava tosando ar alto, mas nós olhávamos o vôo etc mo quem se inclina para espiar um peixe num aquário.
Depois, o urubu. Pairou, orbitando giros amplos. Muito tempo. Mesmo para os seus olhos de alcance, era difícil localizar o alimento. Fechou, pouco a pouco, os círculos. Descaiu, de repente, para um saco em meia-lua, entre duas vértebras de serra. Adernou. E soçobrou no socavão.
E muitos outros urubus, vindos de todas as direções,convergiam para aquele buraco. De vez em quando, alguma coisa devia ir mal, lá por baixo, porque eles subiam do cafundó, revoluteando, que nem, em tarde de queimada, restos de folhas num redemoinho de vento. Deslocavam-se, alternando de planos, avançando uns e crescendo, enquanto outros fugiam fundo, em grãos minúsculos. Até que, de novo, desfaziam os pontos de dominó, e, a um tempo, se abatiam para o brechão.
— Carniça de algum bicho do mato.., raposa... — comentou José Malvino.
Não gostei do prosaísmo. Dei rédea ao cavalo, e proferi:
— Melhor um pássaro voando do que dois na mão!... Eis a versão do provérbio, para uso dos fortes, dos capazes de ideal...
—É a versão dos otários, também.
Mas, aí, começávamos a descer. Mau caminho, gretado, a pedir cuidado. Fomos e falamos, sobre a paciência das montadas, muito tempo. Depois, rota plana, uma hora a fora. E grandes campos, monótonos, se ondulavam, sob o céu.Topamos com um corguinho amável — um ribeiro filiforme, de corrida cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da sombra e atravessava a estrada. Sorria. O camarada sustou o cavalo. Paramos.
—Se seu doutor mais seu Santana acharem que é a hora, a gente pode comer aqui mesmo, que é o lugar melhor... José Malvino tinha trazido boa matalotagem. Santana se munira de pão e latas de sardinha. Apeamos, para ajantarar. O riacho cantou, cantou. Quando montamos de novo, entardecia. Apressamos a marcha. De repente, o José Malvino, estacando o animal, curvou-se para examinar qualquer coisa no
chão.
—Que é que você está olhando, José?
—E o rastro, seu doutor... Estou vendo o sinal de passagem de um boi arribado. A estrada mestra corta aqui perto, aí mais adiante. Deve de ter passado uma boiada, O boi fujão espirrou, e os vaqueiros decerto não deram fé... Vigia: aqui ele entrou no cerrado... Veio de carreira... Olha só: ali ele trotou mais devagar...
—Mas, como é que você pode saber isso tudo, José? indagou Santana, surpreso.
— Olha ali: o senhor não está vendo o lugarzinho da pata do bicho? Pois é rastro de boi de arribada. Falta a marca da ponta. Boi viajado gasta a quina do casco... Eles vêm de muito longe, vêm pisando pedra, pau, chão duro e tudo... Ficam com a frente da unha roída... É diferente do pisado das reses descansada que tem por aqui...
Não consigo dissociar alguma coisa nas pegadas. E continuamos, seguindo o sol, quase em tramonto — um sol de recorte nítido, não ofuscante. Refrescou. E a estrada subia e descia mas, como as descidas eram muito menores, nós subíamos sempre. A tarde tinha recuado. Um resto de cirros, no alto, alvas trabéculas rarefeitas; um empilhado de faixas, tangerina rosa, no poente; no mais, o céu era lisa campânula de blau.
De brusco, no tope do outeiro que íamos galgando, surgiu um cavaleiro, caído do sol. Ficou parado, um momento, sopesando a vara longa. E era bem um São Jorge, enrolado em claridade amarela e coroado de um resplendor carmesim. Depois, frechou para nós. Trancou o trote, rente a José Malvino. O cavalo soprou, e aproveitou a pausa para arquejar. í um baio de crina aparada, e o seu suor cheirava a brisa
marinha. O cavaleiro sacudia os ombros, sem poder acabar de rir. Cumprimentou e indagou.
—Não viram um boi magro, passeando por aí?
José Malvino informou:
—O rastro dele está quentinho. Aí adiante, no lugar adonde o senhor ver, desta banda de cá, bem na beira da estrada, i angico solteiro, em antes de um pé de araticum emparelha com dois barbatimãos abraçados, pois foi aí mesmo que ele embocou no mato... Mas, ainda que mal pergunte, de onde é que estão vindo com essa boiada, amigo?
— De um mês quase de viagem... Da nascença do Roncador...
O vaqueiro riu outra vez, olhando para trás, para o cimo da colina.
—Seu cavalinho, amigo, é assim meio sambanga, mas tem jeito de ser correto... Mas, como é que o senhor, que devia de estar enjerizado com esse serviço ruim de arribada, está assim tão safirento, rindo tanto sem a gente saber de quê?
—É por causa dos companheiros, que vêm aí atrás... Devem de estar danados, porque eu aticei marimbondo neles... Bem, vou indo. Deus lhe pague, amigo! E afundou com o cavalo morro abaixo.
Então, José Malvino explicou:
—Brincadeira boba de vaqueiro. Eles vão indo direitinho, conversando... De longe, um enxerga uma casa de marimbondo, num galho... Se ele tiver cavalo bom, corredor, bate com a vara ou com o chicote na caixa de marimbondo, e esgalopeia: a marimbondada sai toda, assanhada, desesperada de raiva, e ajunta nos outros, e nos cavalos, ferroando... Os cavalos pegam a pular, e o pessoal xinga nome feio... Às vezes até cai algum no chão... O melhor de todos é o marimbondo-enxu, que é uma vespa danada, que vem longe, voa até quase meia légua, escara muçando povo... É um pagode!
Chegando ao alto do morrete, avistamos dois outros cavaleiros, que desciam a contraencosta. Cá embaixo, cruzamos. Estão furiosos; são campeiros do Saco do Sumidouro: não tinham nada com a boiada forasteira, nem conheciam o vaqueiro, que passara por eles e pedira adjutório para desentocar o boi arribado; mal haviam juntos meio quarto de légua, e fora a peça dos marimbondos...
—Que vão fazer, agora? — perguntei, receoso de um conflito no meio do cerradão.
— Vamos ajudar o diabo do vaqueiro, uai! Mas vocês não estão com raiva dele?
— Que nada... À hora em que a gente puder, tira a forra! Quero ver se arrumo um jeito de tafulhar esta pedrinha pontuda por debaixo do suador da sela do desgramado... O cavalinho é niquento... Agaranto que o animal vai tacar um joão no chão!...
E galoparam.
Prosseguimos.
Mas, havia uma cruz, e José Malvino contou:
—Aqui foi que enterraram o bexiguento... Isto já faz muito, não é do meu tempo...
O varioloso tinha caído com febre, muito mal, quando passava por aqui. Ia para uma qualquer parte, vindo depressa para casa, de volta do sertão. Levaram-no para uma cafua, lá em baixo, num rabo-de-grota. Só uma mulher velha, que já tivera a doença e pois estava imunizada, era quem cuidava dele. E o homem sofria e delirava, e tinha medo, tinha horror de ficar sozinho. Pedia, chorando, que queria ver gente, outras pessoas, muita gente junta, ainda que fossem estranhos. E então, quando a febre amainou, na melhora pré-agônica, ele conheceu que ia morrer, e implorou que o enterrassem bem à beira da e onde o povo passasse, onde houvesse sempre gente a passar..
— Lugar assombrado! conclui José Malvino.
É a quarta ou quinta vez que ele indica lugares malassombrados. Já sei: todo pau-d’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por qualquer causa, fizeram estância, depondo o esquife no chão; todas as encruzilhadas — mas somente à meia-noite; todos os caminhos: na quaresma— com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, e o cramondongue, que um carro-de-bois que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar.
— Aqui, vamos descer, de uma vez. Estamos chegando, seu doutor. Santana emerge dos seus cálculos:
— Bem, aqui nos separamos. Antes das dez, estou nos Tucanos... Loucura, viajar de noite, sozinho, por essas serras...
— Venha comigo. Você janta e dorme na fazenda, e...
— Não posso. Fica para outra vez. Sobrou um resto da matula... O burro é bom...
—Teimosia!
— Não posso, mesmo. Falta-me encontrar um meio de impedir o “furo” pelo xeque de cavalo, sem modificar a posição do rei branco... Há um peão mal colocado, e não quero aumentar o número de peças brancas... Isso tiraria toda a beleza do problema... Se...
— E quando você aparece? Por estes dias?
— Impossível. Tenho uma enfiada de escolas por visitar, e devo tomar o trem muito longe daqui. Até outra vez!...
E Santana toca, na mesma andadura, sem se voltar. Mas tornarei a vê-lo, sei. E é graças aos encontros inesperados dos velhos amigos que eu fico reconhecendo que o mundo é pequeno e, como sala-de-espera, ótimo, facílimo de se aturar...
Uma descida, íngreme e pedrosa. Funda. Mas, lá em cima, ainda está claro, porque lá em cima é o araxá.
Descemos ainda. Vadeamos um regato raso. De sombra em sombra, a estrada anoitece, entrando debaixo do mato, porque as arvores tecem teto. Os animais querem andar mais ligeiro. E é a derradeira descida, pois a casa da fazenda fica num umbigo de taça.
— Por que não fazem as casas em lugar alto, José Malvino?
— Sim senhor, seu doutor, bem bom que era. Mas dava um trabalhão p’ra se carrear água lá p’ra riba... Nesses altos, a gente pode campear, que aguada não se acha nenhuma, não senhor.
Uma porteira. Mais porteiras. Os currais. Vultos de vacas, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear.
***
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