sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Minha Gente - Parte II


João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo em 1908. Desde muito cedo, estudou e teve grande aptidão para línguas. Começou a aprender francês sozinho e depois se transformou num poliglota. Segundo ele mesmo disse:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Na faculdade, formou-se em Medicina e foi médico de uma pequena cidadezinha e depois do exército. Mas é somente em 1934 que um amigo lhe mostra a verdadeira vocação e ele passa em 2o lugar no exame do Itamaraty. É na nova profissão que Guimarães Rosa se destaca, além de suas obras literárias, que foram sua principal "alavanca à imortalidade".

Minha Gente - Guimarães Rosa - Parte II



Já estou aqui há dois dias. Já revi tudo: pastos, algodão, pastos,  milho, pastos, cana, pastos, pastos. E, dos chiqueiros às turbinas, do pomar ao engenho, tudo encontro transformado e melhorado. Mas o mais transformado e melhorado é mesmo o meu grande e bondoso tio Emílio do Nascimento, que assina “do Nascimento” porque nasceu em dia de Natal. De seis anos atrás, lembrava-me do tio, e péssima figura fazia ele na minha recordação: mole para tudo, desajeitado, como um corujão caído de oco do pau em dia claro, ou um tatu-peba passeando em terreiro de cimento.
A venda do bezerro, por exemplo, transação árdua e langorosa, que eu tivera o infortúnio de testemunhar. Havia um novilho em ponto de ser amansado para carro, e meu tio Emílio, que queria vender o novilho, e ainda outro fazendeiro, tio de qualquer outra pessoa, que desejava e precisava de comprar o novilho duas vezes aludido. E, pois, a coisa começou de  manhã. O tal outro fazendeiro amigo chegou e disse que “ia passando, de caminho para o arraial, e não quis deixar de fazer uma visitinha,  para perguntar pela saúde de todos”... Sentaram-se os dois, no banco da varanda.
Tio Emilio sabia que o homem tinha vindo expresso para entabular negócio. E, como o novilho era mesmo bonito, ele saiu um pouco, “para encomendar um cafezinho lá dentro”.., e ordenou que campeassem o boieco e o trouxessem, discretamente, junto com outros, para o curral. Em seguida, voltou a atender o “visitante”. E, mui molemente, tal como sói fazer a natureza, levou o assunto para os touros, e dos touros para as vacas, e das vacas aos bezerros, e dos bezerros aos garraios. Aí, “por falar em novilhos”, se lembrou de que estava com falta dos ditos: tinha alguns, mas precisava de reformar as juntas dos carros... E até sentia pena, porque os poucos que possuía eram muito bem enraçados, primeira cruza de zebu gyr, cada qual melhor para reprodutor... Mentira pura, porquanto ele tinha mas era um excesso de bezerros curraleiros, tão vagabundos quão abundantes.
Aí, o outro contramentiu, dizendo que, felizmente, na ocasião, não tinha falta de bezerros. Eu saí, andei, virei, mexi, e, quando voltei, duas  horas de pois, as negociações estavam quase que no mesmo pé em que eu as deixara.
Depois do almoço, idem. Pouco antes do jantar, ainda. Iam e vinham, na conversa mole, com intervalos de silêncio tabaqueado e diversões estratégicas por temas mui outros. De vez em quando, Tio Emílio se lembrava de perguntar por mais um parente longínquo do seu amigo, e o seu amigo perguntava por um célebre cavalo de Tio Emilio, falecido fazia três anos. E ambos corriam do assunto e voltavam ao assunto, e era bem como na estória da onça e do veado, que, alternadamente e com muita confiança em Deus, construíram uma casa, ignorando-se mutuamente a colaboração.
E o homem foi embora. E meu tio visitou o homem, dali a dois dias. E o homem voltou à fazenda do meu tio. E, no fim do mês, o vitelo foi  vendido e comprado, sendo que, por pouco mais, teria chegado a velho boi.
Mas, agora, há-de-o! Quem te viu e quem te vê... Agora Tio Emílio é outro: rejuvenescido, transfigurado, de andar e olhar  bem postos e bem sustentados, se bem que sempre caimão, fechadão. Logo depois do primeiro abraço, fiquei sabendo por quê: Tio Emílio está, em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política.
Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (n° 1), ao mesmo tempo que apóia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (n°2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município n° 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (n° 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio,
resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.
Agora, o que mais depressa aprendi foram os nomes dos diversos partidos. Aqui, temos:João-de-barro — que faz a casa —  e Periquito —  que se apodera da casa, no caso em apreço o Governo municipal. No município n° 2, hostilizam-se: Braúnas — porque o respectivo chefe é um negociante de pele assaz pigmentada — e  Sucupiras — por mera antinomia vegetal. No lugar, zumbem: Marimbondos versus Besouros. E, no município nº 3,  há Soca-Fogo, Treme- Terra e Rompe-Racha —  intitulações terroríferas, com que cada um pretende intimidar os dois outros.
Mas, aqui neste nosso feudo, grande é o prestígio do meu grande Tio Emílio. Seu agrupamento domina a zona das fazendas de  gado, e manda na metade da vila. Só o arraial é que ainda está indeciso, porque obedece ao médico, um doutor moço e solteiro,  pessoa portanto sem nenhuma urgência, que tarda a se definir.
Tio Emilio não cessa de receber gente. Expede portadores, e, até fora d’horas na noite, costumam chegar emissários, O número de camaradas e agregados aumentou: na fazenda, atualmente, não se recusa trabalho, nem dinheiro, nem nada, a ninguém. Há conciliábulos, longas conversas com sujeitos da vila, passeando na varanda. E dai eu esperar notáveis coisas para o de Santana costuma dizer: — Raspe-se um pouco qualquer
mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político...
Para mim, não é bem isso. Tanto mais que ninguém raspou Tio Emilio. Mas, acontece que ele sempre gostou de caçar e de pescar. E, de tanto ver a paca apontar da espumarada do poço, bigoduda e ensaboada como um chinês em cadeira de barbeiro... E de se emocionar com a ascensão esplêndida da perdiz, levantada pelo perdigueiro, indo ar acima, quase numa reta, estridulante e volumosa, para se encastelar... E de descair o anzol iscado, e ficar caladinho, esperando o arranco irado da traíra ou os puxões pesados do bagre... Bem, afinal, pode ser que seja Santana quem tenha razão.
Tio Emílio tem duas filhas. A mais velha, Helena, está casada e não mora aqui. A outra, Maria Irma, não deixa de ser bastante bonita. Em outros tempos, fomos namorados. Desta vez me recebeu com ar de desconfiança. Mas é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria pessoa da graça. Graciosíssima. O perfil é assim meio romano: camafeu em cornalina... Depois, cintura fina, abrangível; corpo triangular de princesinha egípcia... Mas a sua maior beleza está nos olhos: olhos grandes pretíssimos, de fenda ampla e um tanto oblíqua, e electromagnéticos rasgados quasemente até às têmporas, um
infinitesimalzinho irregulares; lindos! Tão lindos, que só podem ser os tais olhos Ásia-naAmérica de uma pernambucana — pelo menos de uma filha de pernambucanos, quando na de meia ascendência chegada do Recife...
Não entendi, e indaguei do Tio Emilio. Não, todos os  avós de Maria Irma são rigorosos mineiros, de ontem e de anteontem, da Monarquia, das Sesmarias. Por igual, não me explico o fato de a minha deliciosa priminha, sendo assim tão “tão”, continuar solteira... Bem, preciso de levar em conta que ela passou alguns anos no internato, de onde veio há apenas ano e meio, quando a minha santa Tia Eulália teve chegado o seu dia de morrer. Mesmo assim, sou capaz de jurar que Maria Irma já recusou mais de um pretendente. E quase chego a sentir pena por esses entes infelizes.

*** 

Tio Emílio pediu-me que redigisse um telegrama ao Secretário do Interior, solicitando a substituição do comandante do destacamento policial da vila, que, por sinal, já foi cambiado duas vezes, nestes seis meses derradeiros. Porque, lá na Capital, sabem montar à cossaca, em dois ginetes, e as duas facções são atendidas rotativa e relativamente. Enquanto isso, o tempo passa, o pau vai e vem, e folgam os filhos da sabedoria. Mas, às vezes, meu tio bate com o rebenque na bota, e fala em “compressão e  suborno”; depois, suspira e comenta a degenerescência dos usos e a sua necessária regeneração.
Mal meu tio saiu, e Maria Irma aparecia. Veio vindo, com o ondular de pombo e o deslizar de bailarina, porque o dorso alto dos seus pezinhos é uma das dez mil belezas de Maria Irma.
Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, mui maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: —  priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...
Mas, parece que eu deixei transparecer entusiasmo excessivo, porque Maria Irma, prestigiando o encanto radioativo dos olhos, com uma inclinação lateral da cabecinha, alteou a voz, para dizer que está quase noiva.
— Está mesmo? É sim? De quem?
—  Não. Não sei. E depois? — e Maria Irma riu, com rimas claras.
— É ou não é, Maria Irma? Não mude de assunto...
—  E depois? E depois? E depois?...
Depois, parece que eu fiquei um pouco decepcionado, até à hora do jantar. E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais, que, para demarcar-lhes a pupila da íris, só o deus dos muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore preto, ou o gavião indaié, que, ao lusco-fusco e em vôo beira nu vens, localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada.
Estará ela mesmo comprometida?
Ainda bem... Ainda bem. Não vim aqui para a roça para amar ninguém.

*** 

Minha prima costurava no seu quarto. Tio Emílio fora à vila. Eu não quis ir. Também, não temos cerimônias. Choveu, com sossego, molemente; mas, de tarde, deu uma estiada firme, de mostrar um mundo lindo. Bento Porfirio me convidou para pescar. Fui. O carrego, saindo da ipueira, é um rego fino e reto, dilatado a e ali em poços escuros, quase redondos, com o mato clássico a orlar-lhe as margens: de cá de longe, do alto, do ponto onde cavamos chão procurando minhocas para isca, víamos águas e as frondes, justinho como um ramal de grimpa de jaboticabeira, com frutas maduras enfiadas em série comprida.
Os poços grandes são apenas três: o de cima serve de piscina para os camaradas; no do meio, de água limosa, mora um jacaré ermitão, de vida profunda, que deve ser verde e talvez nem exista; o último, aonde vamos, é o poção. Ali, há uma gameleira, digna de druidas e bardos, e, na sa água, passante, correm girinos,
que comem larvas de mosquitos, piabas taludas, que  devem comer os girinos, timburés ruivos, que comem muitas piabinhas, e trairas e dourado que brigam para poder comer tudo quanto é filhote de timburé. Boa sombra e bom pesqueiro. Descemos para lá, colhendo goiabas bichadas, pisando o capim com cautela — para o bote de algum “bicho mau sem pernas” —  e erguendo as varas, com jeito, para livrar os anzóis da ramaria baixa.
Bento Porfirio é um pescador diferente: conversa o tempo todo, sem receio de assustar os peixes. Tagarela de caniço e, punho, e talvez tenha para isso poderosas razões. E tem mesmo. Está amando. Uma paixão da brava, isto é: da comum. coisa muito séria, porque é uma mulher casada, e Bento Porfírio também é casado, com outra, já se vê. A água vem ao poção por um túnel de verdura. Há um tronco velho, servindo de banco. Mas Bento Porfírio prefere sentar-se na raiz grossa da gameleira.
— Pode falar nela, Bento.
— P’ra quê?... Essas artes a gente guarda... “Quem fala muito, dá bom-dia a cavalo”!...
Sabia: se o interpelo, susta logo as confidências. Mas, daí a minutos — mudei de assunto — ele vai falando, falando, sempre as mesmas coisas. E eu já estou cansado de saber que ela é boazínha, botininha, moreninha, engraçadinha, toda assim-assim, bisuim....
Bento Porfirio examina a chumbada, isca o anzolão de dourado, liberta a linha e dá de vara, açoitando a água com violência, “pra chamar a diabada desses peixes!”... Faço o mesmo, com o anzol pequeno, e Bento fica com um meio-riso, me espiando de esconso. Já sei: aqui eu não pesco é sobra nenhuma; as piabas não vir porque, neste recôncavo escuro, sem correnteza, deve morar, numa loca, debaixo do tronco podre, uma traira feroz. Como bom capiau, Bento Porfirio acha que ainda é cedo para me avisar. Guarda o pulo-de-gato. Mas não me importo. As linhas se estiram, levadas. Passam águas. Passa o tempo.
A história de Bento Porfirio é triste, e ele põe toda a culpa no “maldito vício” de pescar. No Pau Preto, nunca que acontece nada; mas, um dia, o Agripino, bom parente, convidou:
—  Vamos ao arraial, para as missões, que é para você ficar conhecendo a minha filha, a de-Lourdes... Estou querendo ter vontade de arranjar o casamento de vocês dois...
E Bento Porfírio tratou que ia, mas roeu a corda, porque uma turma grande estava de saída para uma pescaria no Tou-no-Tombo, com mulher-da-vida, comeria, sanfona até.
Companheirada certa. Não resistiu: se amadrinhou com eles, e ficaram Uma semana por lá... O Agripino, rabicundo, foi sozinho para o arraial. Ô tristeza!
Oh, tristeza! Da gameleira ou do ingazeiro, desce um canto, de repente, triste, triste, que faz dó. E um sabiá. Tem quatro notas, sempre no mesmo, porque só ao fim da página é que ele dobra o pio, Quatro notas, em menor, a segunda e a última molhadas. Romântico.
Bento Porfírio se inquieta:
— Eu não gosto desse passarinho! ... Não gosto de violão... De nada que põe saudades na gente.
Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio,  já caiu aqui perto de nós. Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheço, aonde nunca irei, more alguém que está à minha espera... E que jamais verei, jamais...
Bento ficou sério. Até mais simpático. E suspirou:
— Estou me alembrando da minha mãe... Morreu longe daqui. Ai, minha mãezinha, dando de comer às galinhas, na porta da cafua de beira da estrada, lá no Aporá!...
— E o resto da historia, Bento?
— Pois o resto é que é o mais triste, o pior...
Quando Bento Porfírio veio a conhecer a prima de-Lourdes ela já estava casada com o Alexandre. Foi só ver e ficar gostando. E ela também...
— Ai, que mundo triste é este, que a gente está mesmo nele, sé p’ra mor de errar!... E, quando a gente quer concertar, ainda erra mais... Maldito vício de gostar de pescaria!
O “concerto” do Bento foi casar, por sua vez, com a Bilica, só por pirraça e falta do que fazer. Mas a Bilica agora para nada conta. Tento admoestá-lo:
— Mas, você, casado como é, pai de família, não tem vergonha de andar com outra mulher?
— Uê! Pois então burro maniatado não pasta?!


*** 

Na hora do jantar, Maria Irma foi muito amável. Depois do doce — compota de mangabas de-vez, em verde calda crassa —fitou-me com um olhar novo, quase prometedor. Fiquei sério. Tomei meu café e vim fumar na varanda. Havia um recadeiro, de roupa amarela, com três cartas no bolso, disposto a esperar o regresso do meu tio. Puxei conversa. E falamos, — sobre porcos, e preços, e toucinhos, e formigas, formigueiros, formicidas, — até o escuro entrar e engrossar. Só então, fui dizer boa- noite  a Maria Irma. Esquivo e seco. E, inesperadamente, ela me mirou, agora com um sorriso sério, dizendo:
— Você faz tudo como devia fazer... Só, às vezes, isso me dá raiva... Mas eu gosto que você seja mesmo assim...
Fechei-me no quarto. Pela janela aberta entrava um cheiro de mato misantropo. Debruceime. Noite sem lua, concha sem pérola. Só silhuetas de árvores. E um vagalume lanterneiro, que riscou um psiu de luz.
Por que será que Maria Irma mudou de maneira?... Não sei e nem quero saber. Uma mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça. Tertuliano Tropeiro aconselha:
— Seu doutor, a gente não deve ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo...
Vou dormir.
Em noite de roça, tudo é canto e recanto. E há sempre um cachorro latindo longe, no fundo do mundo.

***

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