terça-feira, 6 de novembro de 2012

Ecos de Paris



Agora coloco a metade do primeiro capítulo de uma das obras do maior expoente realista português: Eça de Queiroz. O autor, que vivia em Paris, teve grande influência dos escritores franceses da época. Alguns de seus romances, como a trilogia "O crime do padre Amaro", "Os Maias" e "O primo Basílio" seguem a estrutura do romance realista francês. E outros, como "A cidade e as Serras" tem mais o estilo próprio do autor. No entanto, mesmo os primeiros têm características que fogem um pouco à cartilha através de personagens não planos entre outras. Ecos de Paris fala ao mesmo tempo da cidade e da vida social.
Essa introdução no primeiro capítulo conta a descaracterização cultural para imitar as revoluções sociais que aconteciam em Paris. Caminho esse que desagrada o autor e ao fim do qual ele prevê o total desinteresse pelas cópias em detrimento de Paris e Londres.



Ecos de Paris - Eça de Queiroz



I
PARIS E LONDRES


Eu não direi, como Lord Beaconsfield, que «no mundo só há de verdadeiramente interessante Paris e Londres, e todo o resto é paisagem». É realmente difícil considerar Roma como um ninho balouçando-se no ramo de um ulmeiro, ou ver apenas no movimento social da Alemanha um fresco regato que vai cantando por entre as relvas altas.
Não se pode negar, porém, que a multidão contemporânea tende para esta opinião do romanesco autor de Tancredo e da guerra do Afeganistão: nada vê no universo mais digno de ser estudado e gozado do que a sociedade, essa coisa cintilante e vaga que pode compreender desde as criações da arte até aos  menus  dos restaurantes, desde o espírito das gazetas até ao luxo das librés – e, muito racionalmente, corre a observar a sociedade, a penetrar-se dela, onde ela é mais original, mais complexa, mais rica, mais pitoresca, mais episódica, em Paris e em Londres: ao resto da Terra pede apenas cenários de Natureza, relíquias de arte, trajes e arquitecturas...
... Em Roma contempla os ornamentos do passado – o Coliseu e o papa; em Madrid interessam-no só os Velásquez e os touros; ninguém viaja na Suíça para estudar a constituição federal ou a sociedade de Genebra, mas para embasbacar diante dos Alpes.
E assim, para a turba humana, mais impressionável que critica, o mundo aparece como uma decoração armada em tomo de Paris e Londres, uma curiosidade cenográfica que se olha um momento, pedindo-se logo toda a atenção na tragicomédia social que palpita ao centro.
Isto  é uma superstição. Mas se realmente, o mundo fosse apenas uma paisagem acessória  – a devoção burguesa por Paris e Londres, residências privilegiadas da humanidade criadora, seria justificável: porque, na verdade, o interesse do universo está todo na vida, na sua luta, na sua paixão, no seu cerimonial, no seu ideal e no seu mal. O Sol, nascendo por trás das Pirâmides, sobre o fulvo deserto da Líbia, forma um prodigioso cenário; o vale do Caos, nos Pirenéus, é de uma grandeza exuberante – mas todos estes espectáculos hão-de ser sempre infinitamente menos interessantes que uma simples comédia de ciúmes, passada num quinto andar. Que há, com efeito, de comum entre mim e o Monte Branco? Enquanto que as alegrias amorosas do meu vizinho, ou os prantos do seu luto, são como a consciência visível das minhas próprias sensações.
O grande Dickens, diante dos Alpes ou dos palácios de Veneza, punha-se a pensar com saudades nas tristes ruas de Londres, num rumor de fim de dia e no prazer de surpreender as expressões de ansiedade, triunfo ou dor, nas faces dos que passam, alumiados pelo gás vivo das lojas. E que o melhor espectáculo para o homem  – será sempre o próprio homem.
Se sobre a Terra só houvesse fachadas de catedrais ou vulcões flamejantes, a Terra parecer-nos-ia tão insípida como a Lua, ou (ainda que isto seja talvez exagerado) como a própria Lisboa. Por mais cantantes que sejam as  águas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o vale – a paisagem é intolerável, se lhe falta a nota humana, fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença de um peito, de um coração vivo.
Mas a verdade  é que fora de Paris e Londres há também humanidade. Sampetersburgo não forma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não é uma floresta com uma população de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa mesmo se encontra, de vez em quando, um homem. Que importa! O mundo persiste em considerar essa humanidade de Berlim, de Lisboa ou Sampetersburgo como um mero acessório da decoração, como aquele arabezinho diminuto que os fotógrafos colocam sempre à base das ruínas de Palmira, ou como esses pastores vestidos de um farrapo de púrpura que nos quadros do século XVII ornam as paisagens ideais.
O que essa humanidade de província faz, diz, sofre ou goza – é-lhe indiferente. Não é a ela que vai ver, se visita os lugares que ela habita: o que lá lhe move a curiosidade apressada  é algum monumento, algum panorama  –- a paisagem, como diz Lord Beaconsfield. Para o estrangeiro, Portugal é Sintra, a Alemanha é o Reno: até mesmo na ideia de Lord Byron, e de outros depois dele, o que estraga a beleza de Lisboa  é a
presença do Lisboeta  – como a mim o que me estraga a Alemanha  é a presença do Prussiano. Positivamente a multidão só reconhece uma sociedade  – a de Paris e de Londres.
Mas, dentro em pouco, nem ruínas, nem monumentos haverá dignos de viagem; cada cidade, cada nação, se está esforçando por aniquilar a sua originalidade tradicional, nas maneiras e nos edifícios, desde os regulamentos de polícia até à vitrina dos joalheiros  – a dar-se a linha parisiense. No Cairo, cidade dos califas, há cópias do Mabile, e os ulemás esquecem as metáforas gentis dos poetas persas, para repetir os
ditos do Figaro; o primeiro som que ouvi, ao penetrar as muralhas de Jerusalém foi o cancã da Bela Helena, e saiu da habitação de um rabi, de um doutor da lei santa; nas margens do Jordão, sobre a areia dourada, que os pés de Jesus pisaram, achei dois velhos colarinhos de papel,  modelo Smith: bem sei que não pertenciam nem ao Salvador, nem ao Precursor, mas lá estavam, e despoetizavam suficientemente aquela
riba sagrada.
O mundo vai-se tornando uma contrafacção universal de Bulevar e da Regent Street. E o modelo das duas cidades  é tão invasor que, quanto mais uma raça se desoriginaliza, e se perde sob a forma francesa ou britânica, mais se considera a si mesma civilizada e merecedora dos aplausos do Times. O Japonês julga-se, na escala dos seres, muito superior ao Chinês, porque em Yedo já o indígena se penteia como o tenor Capoul e lê Edmond About no original; enquanto que a China, obsoleta nas vetustas ruas de Pequim, ainda vai no rabicho e em Confúcio. E, ainda assim, nas margens do Amor já há fábricas de tecidos de algodão, como em Manchester.
Positivamente, inclino também para a ideia de Lord Beaconsfield: a originalidade viva do universo está em Paris e em Londres: tudo mais é má imitação de província. Por isso que a curiosidade pública  é impelida para lá – dando ao resto do mundo apenas aquele olhar rápido que se tem para o fundo dos retratos, onde verdejam vagos de paisagem ou se perfilam linhas de um pórtico.
É por isso que ninguém que tenha o orgulho de se considerar ser racional prescinde de se informar diariamente de tudo  que se passa em Paris ou em Londres, desde as revoluções até às toilettes, desde os poemas até aos escândalos.
O desejo mais natural do homem é saber o que vai no seu bairro e em Paris.
Que importa o que sucede na  Ásia Central, onde os Russos se batem, ou  na Austrália, onde há crise ministerial? O que se quer saber é o que fez ontem Gambetta, ou o que dirá amanhã o professor Tyndall.
E com razão: a Ásia Central e a Austrália não ensinam nada, e Paris e Londres ensinam tudo.
Tendo assim sacrificado suficientemente à regra, que quer que todo o escritor da raça latina nunca enuncie a sua ideia ou conte o seu facto sem se fazer preceder de frases genéricas armadas em pórtico – creio que devo começar esta crónica falando hoje de Paris, capital dos povos e pátria genuína de Mr. Prudhomme...

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