sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Juca Pirama - Parte I



Embora todos saibamos a inverossimilhança do ideal de índio narrada por Gonçalves Dias e o abismo de diferença entre o tupi e timbiras representados e os verdadeiros, não se pode deixar de apreciar a excelente poesia. Juca Pirama é o poema épico brasileiro. Ou o épico índio. Mostra um índio que representa uma nação, ou antes todas as nações de índios. O herói no entanto passa por momentos de desonra que o elevam ainda mais nos momentos de honra e glória. Além disso é um guerreiro com sentimentos. A única coisa que o faz vacilar ante a morte é o amor pelo pai. E isso o faz ainda mais heróico.



Juca Pirama - Gonçalves Dias - Parte I



I-Juca Pirama

No meio das tabas de amenos verdores, 
Cercadas de troncos - cobertos de flores, 
Alteiam-se os tetos d’altiva nação; 
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, 
Temíveis na guerra, que em densas coortes 
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória, 
Já prélios incitam, já cantam vitória, 
Já meigos atendem à voz do cantor: 
São todos Timbiras, guerreiros valentes! 
Seu nome lá voa na boca das gentes, 
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, 
As armas quebrando, lançando-as ao rio, 
O incenso aspiraram dos seus maracás: 
Medrosos das guerras que os fortes acendem, 
Custosos tributos ignavos lá rendem, 
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro, 
Onde ora se aduna o concílio guerreiro 
Da tribo senhora, das tribos servis: 
Os velhos sentados praticam d’outrora, 
E os moços inquietos, que a festa enamora, 
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto, 
Sua tribo não diz: - de um povo remoto 
Descende por certo - dum povo gentil; 
Assim lá na Grécia ao escravo insulano 
Tornavam distinto do vil muçulmano 
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro 
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro 
Assola-se o teto, que o teve em prisão; 
Convidam-se as tribos dos seus arredores, 
Cuidosos se incubem do vaso das cores, 
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira 
Entesa-se a corda da embira ligeira, 
Adorna-se a maça com penas gentis: 
A custo, entre as vagas do povo da aldeia 
Caminha o Timbira, que a turba rodeia, 
Garboso nas plumas de vário matiz.

Em tanto as mulheres com leda trigança, 
Afeitas ao rito da bárbara usança, 
índio já querem cativo acabar: 
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, 
Brilhante enduape no corpo lhe cingem, 
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,


II

Em fundos vasos d’alvacenta argila 
Ferve o cauim; 
Enchem-se as copas, o prazer começa, 
Reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam, 
Sentado está, 
O prisioneiro, que outro sol no ocaso 
Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo, 
Mostra-lhe o fim 
Da vida escura, que será mais breve 
Do que o festim!

Contudo os olhos d’ignóbil pranto 
Secos estão; 
Mudos os lábios não descerram queixas 
Do coração.

Mas um martírio , que encobrir não pode, 
Em rugas faz 
A mentirosa placidez do rosto 
Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta 
No passo horrendo? 
Honra das tabas que nascer te viram, 
Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes 
Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, 
Lá murcha e pende: 
Somente ao tronco, que devassa os ares, 
O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse, 
Como viveu; 
E o caçador que o avistou prostrado 
Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes 
Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
Da fria morte.


III

Em larga roda de novéis guerreiros 
Ledo caminha o festival Timbira, 
A quem do sacrifício cabe as honras, 
Na fronte o canitar sacode em ondas, 
O enduape na cinta se embalança, 
Na destra mão sopesa a iverapeme, 
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo 
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, 
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, 
Como que por feitiço não sabido 
Encantadas ali as almas grandes 
Dos vencidos Tapuias, inda chorem 
Serem glória e brasão d’imigos feros.

"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro; 
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, 
"As nossas matas devassaste ousado, 
"Morrerás morte vil da mão de um forte."

Vem a terreiro o mísero contrário; 
Do colo à cinta a muçurana desce: 
"Dize-nos quem és, teus feitos canta, 
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa 
O índio, que ao redor derrama os olhos, 
Com triste voz que os ânimos comove.


IV

Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas, 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribo tupi.

Da tribo pujante, 
Que agora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do Norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas, 
De tribos imigas, 
E as duras fadigas 
Da guerra provei; 
Nas ondas mendaces 
Senti pelas faces 
Os silvos fugaces 
Dos ventos que amei.

Andei longes terras 
Lidei cruas guerras, 
Vaguei pelas serras 
Dos vis Aimoréis; 
Vi lutas de bravos, 
Vi fortes - escravos! 
De estranhos ignavos 
Calcados aos pés.

E os campos talados, 
E os arcos quebrados, 
E os piagas coitados 
Já sem maracás; 
E os meigos cantores, 
Servindo a senhores, 
Que vinham traidores, 
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo, 
Meu último amigo, 
Sem lar, sem abrigo 
Caiu junto a mi! 
Com plácido rosto, 
Sereno e composto, 
O acerbo desgosto 
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado 
Já cego e quebrado, 
De penas ralado, 
Firmava-se em mi: 
Nós ambos, mesquinhos, 
Por ínvios caminhos, 
Cobertos d’espinhos 
Chegamos aqui!

O velho no entanto 
Sofrendo já tanto 
De fome e quebranto, 
Só qu’ria morrer! 
Não mais me contenho, 
Nas matas me embrenho, 
Das frechas que tenho 
Me quero valer.

Então, forasteiro, 
Caí prisioneiro 
De um troço guerreiro 
Com que me encontrei: 
O cru dessossêgo 
Do pai fraco e cego, 
Enquanto não chego 
Qual seja, - dizei!

Eu era o seu guia 
Na noite sombria, 
A só alegria 
Que Deus lhe deixou: 
Em mim se apoiava, 
Em mim se firmava, 
Em mim descansava, 
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado 
De penas ralado, 
Já cego e quebrado, 
Que resta? - Morrer. 
Enquanto descreve 
O giro tão breve 
Da vida que teve, 
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo, 
Mas forte, mas bravo, 
Serei vosso escravo: 
Aqui virei ter. 
Guerreiros, não coro 
Do pranto que choro: 
Se a vida deploro, 
Também sei morrer.


V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; 
Os guerreiros murmuram: mal ouviram, 
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! 
Brada segunda vez com voz mais alta, 
Afrouxam-se as prisões, a embira cede, 
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

Timbira, diz o índio enternecido, 
Solto apenas dos nós que o seguravam: 
És um guerreiro ilustre, um grande chefe, 
Tu que assim do meu mal te comoveste, 
Nem sofres que, transposta a natureza, 
Com olhos onde a luz já não cintila, 
Chore a morte do filho o pai cansado, 
Que somente por seu na voz conhece. 
- És livre; parte. 
- E voltarei. 
- Debalde. 
- Sim, voltarei, morto meu pai. 
- Não voltes! 
É bem feliz, se existe, em que não veja, 
Que filho tem, qual chora: és livre; parte! 
- Acaso tu supões que me acobardo, 
Que receio morrer! 
- És livre; parte! 
- Ora não partirei; quero provar-te 
Que um filho dos Tupis vive com honra, 
E com honra maior, se acaso o vencem, 
Da morte o passo glorioso afronta.

- Mentiste, que um Tupi não chora nunca, 
E tu choraste!... parte; não queremos 
Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas 
O rebater do coração se ouvia 
Precípite. - Do rosto afogueado 
Gélidas bagas de suor corriam: 
Talvez que o assaltava um pensamento... 
Já não... que na enlutada fantasia, 
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, 
Do velho pai a moribunda imagem 
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato! 
Curvado o colo, taciturno e frio. 
Espectro d’homem, penetrou no bosque!
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