terça-feira, 27 de novembro de 2012

O Espólio do sr. Cipriano - Parte I

Júlio Dinis é um dos principais romancistas do Romantismo português. Para os próximos posts, colocarei o conto O Espólio do Sr. Cipriano. É um conto leve, divertido, inocente que retrata a inocência da ignorância. Sua publicação, primeiramente em jornal, consta agora no livro Serões da Província, uma coletânea de contos do autor. Nesses contos, assim como em seus romances, o autor descreve o campo português "em português". Pelo modo da descrição, imaginamos o sol, a relva, o vento, o resfolegamento para se chegar ao alto de cada morro, o sorriso ao observar a estrada de poeira, lá em baixo, mas não tão baixo, a alegria, o espírito leve e a saudade de não se sabe o quê. Nesse conto, porém há principalmente a inocência pura das pessoas simples.



O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte I


Desde que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à evidência dos factos desarraigá-la. Parece que à medida que um por um se vão quebrando os laços que a prendiam à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceitar, mais atractivos ela ostenta à fantasia popular, sempre afeiçoada ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das campinas.
Quando o povo vê fugir, por inverosímil, do campo da discussão um facto controvertido, é quanto mais se apressa a recebê-lo como dogma, a adoptá-lo com a cegueira da fé; é então que o transmite aos filhos, à maneira de um novo artigo do seu credo religioso, e olha para o que se atreve a levantar a mão iconoclasta contra esses vagos objectos do seu culto ideal como para um ímpio, digno da fulminação celeste.
De historiadores e biógrafos se ri; não há provas nem documentos que valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou ; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a exactidão à poesia, e admitindo em seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crónicas dos tempos passados é através das lendas que se pode procurar a história. Adornada com as galas e louçainhas do maravilhoso, é que o povo se apraz de acolher a tradição. Despida às mãos do historiador austero, parece afectar-lhe tão escandalosamente a vista, como a dos mais castos monges da Tebaida as formas nuas de tentadoras aparições.
Igualmente, ao lado da biografia exacta de um indivíduo, ainda dos mais obscuros, o povo refere de ordinário outra, menos documentada talvez, porém sempre mais curiosa.Com olhar perscrutador penetra o seio das famílias a descobrir aí factos recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais facilmente do que nos da vida pública, se reflectem os caracteres e as índoles.
Não julgueis que lhe basta a enumeração das batalhas, dos feitos brilhantes, dos serviços humanitários, dos actos civis do herói do dia; quer vê-lo em família, depois de despir a farda, a toga ou os arminhos, para envergar o modesto robe de chambre; aspira a devassar-lhe no modo de viver intimo e a estudar-lhe os hábitos; obriga a personagem da história a representar diante de si o papel de filho, de irmão, de amante, de esposo e de pai no drama da vida, e é então que mais interesse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe falecem as informações, inventa, recorre ao inesgotável tesouro da imaginação senão a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo verdadeiramente admirável ! Há o que quer que é sobrenatural na maneira por que se lhe revelam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas, interessadas ambas em conservá-los ignorados ; não espera por provas, satisfaz-se já com indícios ; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam, e, devemos confessá-lo, se em certos casos esta antecipação o leva ao erro, muitas vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o conduz a verdade.
Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a ciência humana. De onde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos fortes, os ignorantes e os ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece?
Suscita-se ãs vezes sobre qualquer indivíduo uma opinião que se diz pública, somente porque cada qual em particular se não atreve a reconhecê-la por sua; os factos conhecidos da vida desse homem parece desmentirem-na, todas as aparências lhe são contrárias, é humanamente impossível encontrar algures os fundamentos dessa crença, nascida não se sabe onde, propagada não se sabe como; e contudo persiste. Porquê? Quem o pode dizer? É, a meu ver, um facto da ordem de outros que observa o naturalista na história dos animais. É um fenomeno de instinto.
Na aproximação do Inverno, as aves viajoras reúnem-se em bandos para desertarem das paragens que parecia oferecerem-lhes ainda por algum tempo os últimos calores de uma estação favorável. Que indício lhes revelou o perigo ? Quem lhes apontou o caminho de mais amenas regiões ? O instinto, respondem os filósofos; e a mesma lesposta obtereis, se o interrogardes sobre tantos outros maravilhosos actos que nos surpreendem, nos costumes de certas famílias zoológicas.
Concedam, pois, também ao povo instintos, instintos que o fazem adivinhar factos ocultos, como a ave pressente o Inverno, instintos sobre os quais se elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio,
mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde.
O povo tem uma fisiologia especial, que ainda está por escrever; concurso de individualidades tão heterogéneas, dá uma resultante, cuja noção não nos pode vir só do conhecimento isolado dos componentes.
Quem o fosse estudar por uma análise minuciosa, quem, por um quase processo anatómico o decompusesse em elementos, para um a um os examinar com escrupuloso cuidado, não o teria compreendido; não seria mais feliz do que se procurasse resolver o problema da vida dissecando um cadáver, e aplicando o microscópio a cada fibra de seus tecidos e órgãos. Onde os homens se reúnem em povo, uma influência oculta se lhes associa: uma como inteligência comum, daí os enigmas da multidão.
A solução destes enigmas não a procurem portanto nos indivíduos, que neles não reside; está na entidade colectiva; assim como o modo de reagir do sal neutro não se encontra no ácido, nem na base,
seus elementos únicos; é o resultado da combinação. Sirvam estas reflexões de prefácio ao caso modesto e obscuro que vamos narrar e que as exemplifica.
Por uma das tais vozes interiores, que entretém o povo dos mais recatados mistérios da vida de família, como se linguareiro duende lhos andasse segredando ao ouvido, era que em uma pequena cidade da
província do Minho, havia muito se tornara opinião geral que Cipriano Martins, octogenário que vivia miseravelmente na mais estreita e mal esclarecida rua do menos limpo e povoado bairro daquela já de si não
muito apetecível terra, não obstante tais aparências pouco inculcadoras, possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela mais sórdida e inqualificável sovinice.
Nada podia modificar a opinião pública a este respeito; era absoluta, geral, intransigente, incapaz de vacilar, estável no seu posto, que defendia heroicamente contra o ataque combinado de todas as aparências ; sublime de pertinácia, admirável de resistência.
Nunca experimentara destas oscilações vulgares nas mais enraizadas crenças; nunca passara por as alternativas de desfavor que até as ideias mais generosas sofrem no correr das épocas, nunca; nem
quando os aguçados cotovelos do velho Cipriano rompiam escandalosamente através das mangas coçadas e beneméritas do seu casacão de saragoça; nem quando aos olhos dos comentadores se patenteavam as laceradas plantas... das botas colossais de que o nosso Harpagão usava, ou as numerosas cicatrizes — vestígios honrosos de longos anos de assinalados serviços — que lhe crivavam as calças, onde cada fábrica de tecidos tinha um espécime de seus produtos combinados todos em artístico mosaico.
Cada vez que o inofensivo tema dos longos e pouco misericordiosos comentários populares, entrava em uma loja a comprar os parcos materiais de sua diária alimentação e estendia a mão para receber os trocos miúdos, aos quais, como outro qualquer, tinha direitos incontestáveis e garantidos por lei, havia nos circunstantes certo resfolegar de mofa que, ao voltar costas o velho, degenerava em bem significativas e nada equívocas exclamações.
— Olhem o unhas de fome!
— Sume-te, porco!
— É capaz de se enforcar por um vintém !
— Se lhe caísse um pataco ao Inferno, atirava-se lá para apanhá-lo, o tinhoso.
— Sovina!
— A pobre irmã morre à míngua por causa da mesquinhez deste tesoureiro do Diabo.
— Come duas sardinhas barrentas, e cozinha só de três em três dias para não fazer despesa em lenha! Podem crê-lo ?
— Junta, junta, para outros to gastarem!
— O peso do teu cofre é que te há-de afogar na caldeira de Pêro Botelho!
E assim por diante iam as apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para a reputação do modesto velho, cujos nervos felizmente se não supraexcitavam com tais estímulos. Tinha uns invejáveis nervos o Sr. Cipriano! a única das suas qualidades que lhe podiam invejar as leitoras. Não há vício menos popular do que o da avareza, pela razão de serem poucos os que com ele lucram.
Assim Cipriano Martins era uma personagem antipática para os seus compatriotas.
Mas quem lhe vira o dinheiro? quem lhe descobrira a riqueza? Neste momento cada qual, interrogado à parte, encolhia os ombros, prolongava os beiços, enrugava a fronte, e respondia:
— Diz-se.
Santa palavra! salvatério das asserções arrojadas! como a consciência fica tranquila quando, após uma afirmação, cuja responsabilidade não quer, a boca oficiosa te pronuncia! Descendente em linha recta daquele traditur dos historiadores romanos, tu és, como teu ilustre avô, o melhor e mais universal excipiente, em que se administram ao público fortes doses de boatos, que ele engole de mais boamente do que quantas pílulas tem arredondado de Hipócrates para cá os dedos dos boticários ou apregoado os Holloways de todos os tempos.
Cipriano Martins tinha uma vez por ano as suas liberalidades, circunstância que, longe de amenizar a rudeza dos juízos públicos a seu respeito, antes a exacerbava; pois de facto nunca mais alto subiam as murmurações como quando em sexta-feira santa saía das algibeiras do sóbrio velho para as dos pobres da freguesia a quantia realmente importante de... cem réis em moedas de cinco. Então é que era ouvir o povo.
— Arrancou hoje cem fibras do coração.
— Tem para chorar cem dias, o velho.
— E para jejuar outros tantos.
— Se isto assim continua, aparece-nos de alguma vez o homem enforcado em sábado de Aleluia.
— Melhor, escusa o povo de queimar outro Judas.
Quando se entra na via das concessões é necessário não dar passos acanhados; sob pena de aumentar ainda mais a indisposição dos ânimos.
Consideração esta de longo alcance político, não obstante as aparências modestas que a revestem aqui.
Cipriano Martins caiu doente, e não chamou médico. A câmara, que adoptava o pensamento público sobre o estado financeiro do seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro dos pobres, razão pela qual o não visitou o médico de partido.
A câmara andou assisada nisto e mostrou-se convencida da seguinte verdade, saída da boca de um grande vulto político: «Quando os governos não tomam espontaneamente a iniciativa no movimento das massas, são arrastados por ela.»
Ora a câmara, que era o governo e não pouco respeitável, não tinha grande vontade de ser arrastada; um dos vereadores, mais que todos, em cuja caixa de rapé estava representado em gravura o fim trágico de Mazeppa, sentia de si para si um estremeção de grande desconforto só de ouvir o termo. Por isso, a câmara adoptou a opinião das massas,
Esta subiu ao auge da indignação, vendo Cipriano desprezar a medicina.
— Olhem o miserável a regatear às portas da morte o preço da vida!
— O homem tem razão — respondeu o barbeiro, a quem por consenso unânime fora decretado o diploma de espirituoso da terra — o homem tem razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.
Este dito do ilustrado superintendente das mais respeitáveis barbas da freguesia foi repetido em todos os círculos com geral aplauso; e a reputação de aguçado satírico, de que há muito gozava o digno colega de Figaro, aumentou, se de aumento era susceptível ainda.
Cipriano Martins morreu, e então é que a curiosidade pública se pôs alerta, e, para entreter o tempo de espera, prestou ouvidos às historietas da imaginação. Esta fez o seu dever, nada deixando a desejar.
Cipriano a cerrar os olhos, e o público mais do que nunca a tomá-lo à sua conta. Discutiu-se-lhe a herança, avaliou-se-lhe a fortuna, apontaram-se os herdeiros, inventaram-se testamentos, fantasiaram-se cláusulas absurdas, anteviram-se demandas, devassaram-se esconderijos, arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas monstruosas; isto tudo durante vinte e quatro horas, no fim das quais nem riquezas, nem esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem cláusulas e, por conseguinte, nem herdeiros nem demandas vieram justificar a geral expectativa.
Foi um desapontamento, que, a falar verdade, custou a digerir; os melhores estômagos imparam com ele e mais de uma vez foi regurgitado. E toda aquela boa gente se punha então a ruminá-lo de seu vagar, sem que o fizesse mais digerível.
A irmã do morto, que de si para si nunca nutrira grandes esperanças, porque nunca tivera fé nas riquezas do mano, apresentou-se nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a pedir-lhe que providenciasse para se fazer o enterro do velho Cipriano, pois, nas gavetas, só lhe encontrara uns cobres, que não bastavam para as despesas exigidas pela solenidade.
O administrador viera céptico de Coimbra, doença que apanhara nas margens do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crónica no concelho, que, como diziam os jornais da época, tão dignamente administrava. Por isso olhou para a pobre Maquelina — pois era esse o nome dela — através dos vidros da luneta pendente, ao mesmo tempo que o mais incrédulo sorriso, que o espelho lhe aconselhara, vinha
encrespar-lhe espirituosamente o lábio superior. Ao desbaste de crenças, que este magistrado sofrera, tinha por felicidade sobrevivido entre poucas a crença no espelho, um dos principais conselheiros a quem devia a manutenção da dignidade administrativa.
— Com que então só uns cobritos, diz vossemecê, hem?
O bacharel fizera a descoberta de que este hem lhe dava às palavras certa melodia de bom gosto, e por isso o adoptara.
— Eis tudo quanto possuo — respondeu Maquelina, mostrando em patacos um cruzado, quando muito — V. S.ª bem vê — continuou — meu irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há muito em decadência; ele, coitado, estava velho e não queria oficiais... e agora com a moléstia... por mais economias que a gente fizesse, sempre eram despesas certas e nenhum dinheiro a apurar.
O administrador teve aqui um movimento de lábios, expressivo de inveterada descrença; e como para mais depressa se livrar do contacto de um ser humano, respondeu secamente:
— Faça, se quiser, um requerimento à câmara, porque seu irmão não figura no quadro dos pobres.
E mais não disse.

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