segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte III

Júlio Dinis é mais conhecido por seus 4 romances. As Pupilas do Senhor Reitor é o primeiro a ser publicado e também o mais conhecido. Foi adaptado para o teatro e representado ainda em vida do autor. Os fidalgos da Casa Mourisca foi último escrito e não chegou nem a ser completamente revisto por Júlio Dinis. Esses dois e A Morgadinha dos Canaviais mostram a vida no campo e nas aldeia portuguesas. A paixão pelo campo foi inspirada ao autor quando este esteve passando um tempo na casa de alguns parentes para tentar tratar a tuberculose.
Já Uma Família Inglesa trata da vida da pequena burguesia nascente na cidade do Porto, transformando-se em algo com traços autobiográficos, pois foi o meio onde o autor nasceu. Em todos eles, Júlio Dinis é escrupuloso em descrever com detalhes e realismo a paisagem, os costumes, o estilo de vida e os caracteres das classes portuguesas. Dessa forma, há descrições minuciosas e por vezes extensas que procuram ser leves pois o autor considera-as como parte fundamental de sua obra como um todo.


O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte III



Não sei de nada mais delicado, do que é este ser misterioso e respeitável por excelência, a que se dá o nome de público. É singular como todos tomam a peito manter-lhe a veneração devida e se doem às mais levas infracções que esta sofre. Grita-se contra um facto escandaloso, pateia-se no teatro uma produção imoral, fulmina-se um procedimento menos honesto, em respeito ao público, já se sabe. Não me ofendi eu, nem vós, nem eles; interrogai-os um por um, nenhum se dará por ofendido, mas todos vos responderão com a fórmula: «e o público!» Porém valha-nos Deus, o público é exactamente constituído por mim, por ti, por vós todos que assim respondeis; como é, pois, que de elementos tão pouco susceptíveis resulta um produto
tão melindroso?
Cada qual no gabinete lê uma obra de duvidosa moralidade, ri-se, diverte-se com a leitura, e ninguém quererá admitir que ele lhe possa ter causado o menor prejuízo. Aí temos portanto uma obra inofensiva ; pois não é tal; antes a vemos proclamar um verdadeiro veneno servido pela imprensa ao público, um miasma que se ergue dos prelos, um fermento de dissolução de costumes, e outros nomes igualmente feios. A não vermos nestes factos a confirmação daquelas ideias, que nas primeiras páginas expendi, não sei que outra solução razoável daremos ao problema.
É certo, porém, que o público, citado pelo regedor, achava-se exactamente nestas circunstancias. Todos os presentes abanavam a cabeça em sinal de aprovação; nenhum pela sua parte se mostrava escandalizado com o extemporâneo aparecimento de Maquelina, mas o complexo pelos modos sofria muito com isso.
A referida observação da autoridade humedeceram-se os olhos de Maquelina.
— E que lhe hei-de eu fazer, Sr. Bento Maria ? Quem é pobre...
Houve sussurro na assembleia; o adjectivo parecia beliscar o auditório.
— Pobre! É sempre o mesmo estribilho — disseram algumas vozes.
O regedor serenou o tumulto, dirigindo-se a Maquelina.
— Bem, deixemos agora isso. O que a traz por aqui?
Maquelina explicou-se. A indignação dos circunstantes rebentou.
— Sempre é desaforo!
— Também é preciso ter descaramento.
— É digna do irmão, já vejo.
— A alma do sovina meteu-se-lhe no corpo.
— Quem esconjura esta mulher ?
O regedor principiou a franzir a testa.
— Ora vejam a pobrezinha.
— Nosso Senhor a favoreça, irmã.
— Ora já viram!
O regedor levantou-se.
— Quem enterra o mano ?
— Forte perda, se fica de fora!
— Aquele nem os bichos o querem.
— Leva rumor! Ai, que eu...—rugiu por entre dentes o regedor, e todos imediatamente... silent, arrectisque auribus adstant. Pudera; o ai, que eu... do Sr. Bento Maria não ficou a dever nada ao célebre quos ego... de Neptuno. O regedor sabia, como Virgílio, o valor de eloquentes reticências. Em auxílio da ordem veio de mais a observação de um circunstante, dotado de sentimentos mais humanitários.
— A mulher tem razão, coitadinha, se o miserável deixou tudo escondido.
As massas são fáceis de impressionar. O alvitre modificou as opiniões.
-— É assim, é assim.
— Pobre criatura!
— Que vale tê-lo, se se não sabe aonde ?
Por este tê-lo entendia-se dinheiro; é de facto o substantivo que mais elipses suporta; tão presente o trazem na ideia, que não necessita estar nas orações antecedentes, para ser subentendido.
— Sim, sim, ela tem razão, é pobre, é...
O regedor enfarinhado nas praxes constitucionais, não era homem que fosse de encontro à opinião dos fregueses e, portanto, depois de concentrar por algum tempo o espírito, operação que nem por isso lhe aumentou demasiado a energia, passou o seguinte atestado, modelo de diplomacia e de exactidão ortográfica:
«Eu Bento Maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im
como Maquilina Rosa Martins, solteira, de esta Cidade, não tem, aberes para lazer, as despesas do intero do seu irmon cepreano cujo consta ter dinheiro. Mas o quecerto é que por morte se não incontrou i se é
berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesto e mo diserem pessoas diganas para mim de todo o Creto, pacei esta que juro.
«Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de...
«Bento maria do portal.»
Bento Maria era decididamente o funcionário público de mais expediente e de mais arrojadas medidas que existia então na cidade, Depois de mais algumas dificuldades e tropeços sempre se conseguiu enterrar, à ordem da junta de paróquia, o velho Cipriano, o qual de outra maneira bem teria de ficar fora do seio da terra, por não haver deixado dinheiro.
Todos estes acontecimentos, longe de desvanecerem os boatos das ocultas e sonhadas riquezas de Cipriano, os aumentaram, e deram lugar a duas versões diferentes.
Uns, mas eram a minoria, lançavam em rosto à pobre Maquelina o mesmo que haviam imputado ao irmão; outros, porém, viam nela uma vítima, ainda além da campa, da sórdida avareza do incorrigível octogenário.
Só Maquelina é que rejeitava urna e outra crença. Sabia-se inocente e não se acreditava vítima. E lutando com a idade avançada, tirava forças da fraqueza e ia provendo conforme podia ao seu sustento
quotidiano.
Não pôde, porém, resistir inteiramente às insinuações dos que falavam em tesouros enterrados, e as portas da casa abriram-se de par em par a uma junta de inquérito, presidida pelo regedor, a qual, pelos mais escusos recantos, e a grande profundidade no quintal procurou o decantado tesouro, sem no fim colher frutos de tantos esforços.
E as coisas conservaram-se por muito tempo neste pouco agradável statu quo. Um dia, porém, pioraram longe de se desanuviarem, as circunstâncias de Maquelina. Um sobrinho seu, filho de uma irmã que morrera jovem, voltou do Brasil e, contra o que era de esperar, vinha como partira, isto é,
com a riqueza de Job na desgraça.
A história deste rapaz é uma história longa e curiosa, que desta vez não contarei ao leitor.
Uma manhã, pois, quando Maquelina estava meditando em não sei que medida de economia doméstica, importantíssima para a melhor direcção de suas mesquinhas finanças, entrou-lhe pela porta dentro um rapaz magro, espigado, de fisionomia denunciadora de sofrimentos, o qual lhe estendia as mãos, dizendo: — Bons dias, madrinha, então não me conhece?
— Santa Maria! Querem ver que... És tu, Agostinho?
— Eu, eu mesmo.
A boa Maquelina saltou-lhe ao pescoço e devorou-o de beijos. O rapaz viu-se em talas e com ameaças de asfixia. Depois veio um pensamento à tia Maquelina, pensamento um pouco interesseiro é verdade, mas desculpem-na, e não ma principiem já por isso a olhar com maus olhos; todos como ela o teriam, e, o que
pior é, a poucos viria apenas em segundo lugar e só muito após dos espontâneos impulsos de uma afeição desinteressada: «o rapaz vinha Brasil... e o Brasil sempre é o Brasil» foi a ideia que lhe voou pelo
— Então — disse ela, movida por essa ideia— vens... rico!
Agostinho voltou os bolsos do avesso por única resposta. Maquelina juntou as mãos e não deu palavra.
E para quê? Queriam ainda de parte a parte mímica mais expressiva!
.— Vim para não morrer de fome.
Aqui benzeu-se a boa da tia.
— Embarquei como moço de navio por não ter dinheiro para a passagem.
Neste ponto persignou-se.
— E agora venho pedir-lhe — continuou o sobrinho — que me receba em casa até... até... arranjar modo de vida.
Maquelina, quando, junto da pia baptismal do pequeno Agostínho, se declarara madrinha, à face da Igreja, do filho querido de sua irmã, tinha já concebido uma alta ideia da missão que desde aquele momento ia adoptar por sua e para com o recém-nascido, que sustentava nos braços; nem foram para ela simples palavras de formalidade as que em tom de prédica ouvira ao pároco, sobre os seus deveres futuros. «Na falta dos pais, dissera ele, aos padrinhos compete a vigilância e a educação das crianças, que sob a sua protecção entrarem no grémio da Igreja católica». Ora os pais de Agostinho lá se tinham já partido para melhor morada, e Maquelina, que, eminentemente escrupulosa em negócios de consciência, se julgava por ela obrigada a cumprir até ãs últimas extremidades os seus deveres de cristã, tinha de mais a mais um coração farto para afeições e sentimento.
Fechou, pois, os olhos aos sacrifícios futuros e aceitou a companhia do afilhado.

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