quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Espólio do Senhor Cipriano - Parte IV


O estilo de Julio Dinis é uma mistura entre Romantismo e Realismo. Ao mesmo tempo, por ter mãe de ascendência irlandesa, ele dominava o inglês, o que lhe trouxe a possibilidade de leitura de clássicos ingleses, como Jane Austen e Dickens, de onde ele aprendeu o realismo psicológico, o qual ele mistura ao romantismo português. Sob essa ótica realista, sua obra tem um realismo muito mais inglês, com personagens complexas e que mudam de acordo com a narrativa do que com o realismo francês. Além disso, pelo encanto que tinha pelo próprio país, está misturado não só o romantismo dos sentimentos, onde, afinal, todos acabam felizes, mas um romantismo um pouco ufanista, que exalta a Pátria mostrando seus atrativos.

O Espólio do Senhor Cipriano - Júlio Dinis - Parte IV




— Ele me ajudará também — dizia consigo mesmo a boa mulher, como se quisesse colorir com um pensamento egoísta o impulso que lhe viera directamente do coração.
Nós temos destas coisas.
Mas o certo é que, apesar da melhor vontade, em pouco podia Agostinho auxiliar a madrinha.
Auxiliar de que maneira? Emprego não o pôde ele obter. Naquela cidade, como em muitas outras terras do reino, não se vêem com bons olhos os infelizes que voltam do Brasil pobres. Lá parece uma prova de pouco espírito e da nenhuma aptidão a essa boa gente um semelhante sucesso. O Brasil é, para ela, como o campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso, ou morre-se combatendo. Fugir é de covardes.
E ora aí têm os leitores a razão por que dois meses depois da chegada de Agostinho, era ainda Maquelina quem só provia às despesas da casa, as quais, como era de supor, tinham aumentado; desenvolvendo a pobre velha esforços sublimes para um duplo resultado: obter meios de subsistência e ocultar ao sobrinho os imensos sacrifícios, a que para isso se sujeitava.
Mas Agostinho suspeitava-os e afligia-se. Um dia falou à madrinha nas vozes que corriam ainda sobre as
riquezas do defunto. Maquelina sorriu tristemente, respondendo:
— Pois procura-as.
Agostinho deitou-se à obra com calma, revolveu de novo o quintal a mais de um metro de profundidade, despregou as tábuas do soalho, sondou as paredes, trepou aos mais altos escaninhos da casa... tudo
foi inútil.
Disse adeus ainda a essa ilusão. O que lhe valeu foi estar já costumado a despedir-se delas. A primeira vez custa mais.
No entretanto os esforços e vigílias de Maquelina arruinaram-lhe a saúde. Lutou braço a braço com a doença como lutara com a fome. Lutas heróicas que passam ignoradas, enquanto tantas outras, muito
menos merecedoras das honras da epopeia, são extremamente celebradas em oitava rima. Afinal caiu vencida no leito, e então é que o futuro se lhe mostrou carregado. A pobre mulher não se iludia nem sobre a gravidade da sua moléstia, nem sobre as consequências da sua morte.
Que seria de Agostinho? Agostinho, a quem ela amava já como se amam os entes fracos que vieram procurar a nossa protecção, com esse amor bem mais intenso mesmo do que o votado aos seres que
nos protegem.
Porque o primeiro lisonjeia o nosso orgulho, e o segundo, esse, revela a nossa inferioridade. Coisas humanas.
O futuro de Agostinho era a ideia negra de Maquelina; como ela ficaria contente por morrer se não fora isso! Mas agora custava-lhe; esta lembrança aumentava-lhe a doença. Que diria ela à irmã, quando no Céu lhe pedisse novas do filho? Que o deixara na miséria? E era isso de boa madrinha?
E estes pensamentos e apreensões definhavam-na a olhos vistos. Agostinho aterrou-se, e reconheceu então tudo quanto tinha havido de heróica abnegação no procedimento da tia.
O seu coração de homem teve um movimento pelo qual procurou libertar-se da espécie de colapso em que infortúnios continuados o haviam lançado. Agostinho curvara a cabeça sob a corrente de desgraças que sem interrupção haviam sucedido na sua vida; agora tentava elevá-la em um último esforço.
— É preciso tentar fortuna — dizia ele consigo — amanhã de manhã sairei a pedir trabalho, a tudo me quero sujeitar, a tudo. E adormeceu com este pensamento, sonhando daí a pouco em uma mina de ouro, onde ao fim de muita fadiga, só conseguiu extrair enormes pedras de carvão.
O leitor pode imaginar toda a agradável voluptuosidade de semente sonho. Por a manhã ergueu-se disposto a realizar o projecto da véspera; mas foi encontrar a tia em um estado tão assustador, que não teve
imo para abandoná-la.
— Não tem de ser! — disse consigo Agostinho, a quem a desgraça ase tornara fatalista.
Maquelina mostrava-se de facto em risco iminente. O facultativo de partido veio vê-la; pois Maquelina havia enfim conseguido entrar no quadro dos pobres. Tomou-lhe um pulso, depois o outro; deu-lhe três pancadas do lado direito do tórax, igual número do esquerdo; pousou-lhe o ouvido sobre as descarnadas costelas, e, como se escutasse lá dentro os passos da morte, ergueu-se e fez um gesto de descontentamento visível.
Receitou um chá de alteia e saiu.
Agostinho esperava-o à porta.
— Então ?
O médico puxou pelo relógio, ao qual principiou a dar corda, dizendo com a indiferença profissional:
— Como àquela máquina se não dá corda como a esta, pára dentro em poucas horas.
Agostinho sentiu subirem-lhe as lágrimas aos olhos. O médico voltou-se ainda de novo para dizer:
— Eu escuso de cá voltar, agora o padre.
Estas palavras, ditas em tom mais alto e da maneira mais natural possível, como as sabem dizer alguns adeptos da ciência hipocrática, que se jactam de fortes, chegaram aos ouvidos de Maquelina, que juntou as mãos, e, erguendo os olhos ao Céu, disse com voz débil:
— Aqui está a serva do Senhor, cumpra-se em mim a sua santíssima vontade.
Quando Agostinho entrou no quarto, encontrou-a resignada. Nessa mesma tarde confessou-se e sacramentou-se aquela pobre de Cristo.
Na cidade dizia-se:
— Coitada! o irmão matou-a. Morre de fome e fadiga e com dinheiro em casa.
Era forte cisma a do povo.
Mas há dessas teimas.
Ao pé da noite pediu Maquelina um chá para mitigar a sede
Naquele dia não se acendera ainda o lume em casa. Agostinho esquecera-se de comer, e se se lembrasse não sei bem o que teria sucedido. Melhor foi que se não lembrasse.
Agostinho correu à cozinha, reuniu a custo alguns cavacos já meio queimados para acender o lume, e voltou à sala.
Maquelina dava-lhe instruções da cama.
— Ainda achaste lenha ?
— Achei, sim, madrinha.
— Bem; ora agora... Essa lamparina está acesa ainda?
— Está, madrinha, está, pois não vê.
— Não, filho, já a não vejo.
Havia neste já uma significação que comoveu Agostinho.
Ela continuava:
— Encontraste carqueja ?...
— Não, madrinha... mas...
— Valha-me Deus — disse ela, lutando já com dificuldades para se fazer ouvir. —Olha, sabes, aí... na gaveta do toucador... está uma papelada de que... às vezes me sirvo para economizar. Acende alguma
na... lamparina e... Ai! — terminou ela com um suspiro, que o longo esforço que tinha feito para falar lhe tornara necessário; e depois em voz mais baixa acrescentou:
— Louvado seja o Senhor, a que estado eu cheguei!
Agostinho abriu a gaveta.
— Aí — continuou Maquelina com voz sumida e trémula.
— Achaste? bem... ora agora...
Agostinho inflamou à chama escassa da lamparina um dos papéis que tirara do velho toucador da tia.
— Isso — disse esta satisfeita por se ver compreendida.
Ãs sombras indistintas que reinavam no aposento sucedeu a claridade da lavareda, mas foi de pouca duração. Ainda não teria ardido metade do papel, já Agostinho, soltando um grito inexprimível, o atirava ao chão, abafava-o com os pés, precipitando ao mesmo tempo pela vivacidade do movimento a lamparina, que se fez em pedaços.
A escuridade tornou-se completa.
— Que foi, santo nome de Jesus! que foi, Agostinho? — dizia assustada Maquelina, erguendo-se a meio corpo.
— Que papéis eram estes, minha madrinha?
— Eu sei lá, filho; mas que foi ? valha-me o Senhor,
— Uma luz! uma luz! — bradou Agostinho fora de si; e saiu repentinamente da casa, atravessou a rua, enfiou pela primeira porta que encontrou aberta, galgou um lanço de escadas, penetrou em um quarto
onde trabalhavam pacificamente algumas mulheres, apoderou-se da luz que viu no meio da mesa, em volta da qual elas se formavam em círculo, e sem dar uma única palavra, saiu arrebatado, deixando em completa estupefacção as circunstantes, que só passados minutos voltaram a si, para correrem atrás do mancebo, que parecia possesso.
Agostinho entrou de novo no quarto da tia moribunda, aproximou-se do lugar onde deixara os restos do papel meio consumido, apanhou-o, examinou-o com escrupulosa atenção, depois correu à gaveta do toucador, sujeitou a igual exame os outros papéis semelhantes que ai estavam a monte.
— Por amor de Deus, madrinha... mas... de onde vieram estes papéis ? — exclamou ele, ao passo que um por um os passava em revista.
Maquelina, apoiada no braço convulso e com os olhos espantados, olhava para o sobrinho estupefacta.
— Eram do mano, o Senhor o tenha em glória; guardava-os naquela arca; ele sempre me disse que de nada valiam, e agora que eu me via precisada ia-os queimando, para...
— Mas, valha-nos a Virgem! era uma riqueza inteira que queimava assim!
— Que dizes tu, filho?
Os combustíveis da tia Maquelina eram nem mais nem menos que boas e excelentes notas de banco, às quais o velho Cipriano reduzira os seus haveres, porque o amedrontava o tinir do dinheiro metálico, como chamariz de ladrões: enquanto que por outro lado nunca se pudera resignar a separar-se do seu querido capital, em cuja contemplação saboreava aquela doce voluptuosidade, só dos avarentos conhecida.
Quando se procedeu a investigações em casa de Maquelina para descobrir o tesouro oculto, esqueceram-se, como quase sempre acontece, de examinar os lugares, por onde deviam ter principiado; enquanto profundavam a terra e escavavam as paredes, ninguém se lembrou de abrir a pequena gaveta, que nem chave tinha sequer, e onde Maquelina alojara toda a riqueza. Mas quem o podia supor!
O instinto do povo não o enganara desta vez. Cipriano era de facto rico. Vivera uma vida de privações, praticou um negócio de alta usura debaixo das maiores cautelas e mistério impenetrável; aí está explicada a sua riqueza. É receita infalível para chegar ao mesmo resultado; as pessoas, a quem não nausearem os ingredientes, adoptem-na, porque não falha. Desconfiando de todos, da própria irmã desconfiava, e dava-lhe por isso a entender que de nenhuma importância eram os papéis que ela às vezes por acaso chegara a descobrir.
Maquelina era ignorante, e nem imaginava sequer que se pudesse ter uma riqueza em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a ideia de riqueza andava associada à de muito dinheiro em ouro e prata:
gavetas, cómodas, caixas e burras cheias dele ; e por isso ia queimando agora lentamente aquele tesouro que o irmão acumulara; e isto com o fim de poupar carqueja!
Cleópatra, brindando os amantes com soluções de pérolas preciosas, não conseguiu ser mais magnifica. Era um passatempo de milionário o de Maquelina.
Se Deus lhe prolongasse a vida, até onde iria aquela monstruosa combustão? Que soma enorme seria aniquilada! E ainda assim quanto não consumiria!
Nunca se pôde calcular.
Há o quer que é de sublime neste quadro. Uma mulher velha, caquética, esfomeada, agonizante, tendo ao alcance do braço uma riqueza, como ela nem sequer concebera nos seus mais ambiciosos sonhos, e queimando-a!
A notícia inesperada, que recebia agora, imprimiu àquela existência o derradeiro abalo. A alma, já quase desapegada do corpo, abandonou-o de todo e partiu.
À meia-noite morreu a santa criatura, contente, porque deixara rico o sobrinho e afilhado, único parente que possuía na terra.
Ainda assim, quando se divulgou a notícia, o que, graças à comunicabilidade das mulheres a quem gostinho usurpara a luz, e que foram as primeiras a sabê-la, se não fez esperar muito, houve quem se penteasse como herdeiro.
Faria rir se expusesse aqui os fundamentos das pretensões desta gente, e eu não quero fazer rir o leitor a quem peço antes uma lágrima para a memória de Maquelina.
Não seguiremos agora a história de Agostinho, que se modela por a de todos os homens ricos.
Apenas direi que por suas especulações comerciais conseguiu multiplicar o capital tão inesperadamente herdado, e hoje é milionário.
Vejam o instinto do povo!

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