A literatura portuguesa é sempre mais triste do que a brasileira. A saudade, exclusividade da nossa língua, é um lugar comum na maioria das obras. A obra a seguir não é propriamente de saudade. Mas deixa nos olhos um gosto de saudade. De "tudo o que passou", de "passado lindo sem futuro". O texto a seguir é de Rabelo da Silva, em seu "Contos e Lendas", um trecho da "Última Corrida de Touros em Salvaterra"
A Morte do Conde dos Arcos
Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as músicas. Chegou El-Rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo e vê-se ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça ressoam brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos todos, com o conto das lanças nos estribos e os brasões bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. As plumas dos chapéus debruçam-se em matizados cocares, e as espadas, em bainhas lavradas, pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com garbo à castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo.
O Conde dos Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado à moda da corte de Luís XV, de veludo preto, fazia realçar a elegância do corpo. Na gola da capa e no corpete, sobressaiam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos, as ligas bordadas deixavam escapar com artifício os tufos de cambraieta alvíssima. O Conde não excedia a estatura ordinária: mas, esbelto e proporcionado, todos os seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pálidas de mais, porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupilas negras fuzilava tão vivo e por vezes tão recobrado, que se tornava irresistível. Filho do Marquês de Marialva e discípulo querido de seu pai, do melhor cavaleiro de Portugal e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Ele e o corcel, como que ajustados em uma só peça, realizavam a imagem do centauro antigo.
A bizarria com que percorreu a praça, domando, sem esforço, o fogoso corcel, arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse, torvada, no lenço as rosas vivíssimas do rosto, que decerto descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos rápidos como o faiscar de relâmpago pudesse alguém adivinhar o que só dois sabiam.
El-Rei, quando o mancebo o cumprimentou pela última vez, sorriu-se e disse, voltando-se:
- Porque virá o Conde quase de luto à festa?
Principiou o combate.
Não é nosso propósito descrever uma corrida de touros. Todos têm assistido a elas e sabem de memória o que o espectáculo oferece de notável. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se corriam desembolados, à espanhola. Nada diminuía, portanto, as probabilidades do perigo e a poesia da luta.
Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indício de grande ligeireza, e movimentos rápidos e bruscos, sinal de força prodigiosa. Apenas tocara o centro da praça, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e, escarvando a terra impaciente, soltou um mugido feroz, no meio do silêncio que sucedeu às palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco, os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam à velocidade espantosa do animal, e dois ou três cavalos expirantes denunciavam a sua fúria.
Nenhum dos cavaleiros se atreveu a sair contra ele. Fez-se uma pausa. O touro pisava a arena, ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor. De repente, viu-se o Conde dos Arcos, firme na sela, provocar o ímpeto da fera, e a hástea flexível do rojão ranger e estalar, embebendo o ferro no pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma aclamação imensa do anfiteatro inteiro e as vozes triunfais das trombetas e charamelas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o Conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreira, levou-a aos lábios e meteu-a no peito. Investindo depois com o touro, tornado imóvel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta dele os círculos, até chegar quase a pôr-lhe a mão na anca.
O mancebo desprezava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arrepiar a testa do touro com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com fúria cega e irresistível. O cavalo baqueou, traspassado, e o cavaleiro, ferido na perna, não pode levantar-se. Voltando sobre ele, o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era um cadáver.
Este doloroso lance ocorreu com a velocidade do raio. Estava já consumada a tragédia, e não havia expirado ainda o eco dos últimos aplausos.
De repente, um silêncio em que se englobavam milhares de agonias emudeceu o circo. Rei, vassalos e damas, meio corpo fora dos camarotes, fitavam a praça sem respirar e erguiam logo depois a vista ao céu, como para seguir a alma que para lá voava, envolta em sangue.
Quando o mancebo, dobado no ar, exalava a vida antes de tocar o chão, um gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadáver como uma lágrima de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras soltara aquele grito estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no peito.
El-Rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado.
Outros tempos,mas não há dúvida que naquela época os seres humanos tinham mais raça, ontem visitei a quinta do Conde dos Arcos.Helder Buxo
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